Wagner Balera: antes de tudo, um humanista

Teórico prega novo capitalismo destinado a homem, em sua dignidade e os direitos humanos de todas as suas dimensões. - Por Wagner Balera - (Bonijuris #677 Ago/Set 2022)

Teórico prega um novo capitalismo tendo como destinatário o homem em sua dignidade e os direitos humanos em todas as suas dimensões

Parodiando Euclides da Cunha, pode- se dizer que Wagner Balera é, antes de tudo, um humanista. Isso se extrai não apenas da sua vasta produção científica1 e de suas manifestações em inúmeros eventos, mas também de sua história de vida e do exemplo que a todos proporciona, sempre em defesa da fraternidade, da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, fazendo escola e formando discípulos2.

Em suas reflexões, Sayeg e Balera (2011, p. 104) propõem um humanismo integral “posto a serviço de todos e de tudo com independência de credos, um humanismo, enfim, com fundamento antropofilíaco, legitimador do direito natural da fraternidade constitutivo do jus-humanismo normativo”. Lembrando a doutrina trazida pelo cristianismo, os autores informam que outros pensadores não aceitam o “humanismo fundado em questões teológicas, embora não reneguem as fontes cristãs do humanismo ocidental”, mas ressalvam: “Foi, porém, o pensamento cristão de fraternidade universal que pioneiramente garantiu a cada pessoa o valor da vida e a dignidade, abrangendo todo o gênero humano” (Sayeg; Balera, 2011, p. 85). A ideia do humanismo não é, pois, nova, tendo pelo menos dois mil anos de pregação e, não obstante, ainda não se tornou unanimidade no planeta e ainda clama por efetividade.

Carlos Ayres Britto (2012, p. 19) analisa o humanismo como categoria constitucional, expondo as várias dimensões do seu conceito, inclusive a doutrinária, segundo a qual o humanismo “consiste num conjunto de princípios que se unificam pelo culto ou reverência a esse sujeito universal que é a humanidade inteira. Logo, o humanismo no sentido de crença na aventura humana”.

Océlio de Morais (2021, p. 14-15), em ensaio sobre o tema, examina o humanismo nas declarações de direitos mundialmente conhecidas e na sociedade do século 21, identificando as raízes políticas dos direitos humanos naqueles documentos e o que se projeta na atual sociedade infotecnológica e biotecnológica. Ao salientar a disrupção das bases do humanismo liberal dos séculos 19 e 20, ele lança “o urgente e extremo desafio à construção de um novo humanismo à efetiva proteção da vida nesse ambiente revolucionário”. Ao passo que Sayeg e Balera instigam o humanismo antropofilíaco com vistas à dignidade humana e planetária, Morais defende “a construção do humanismo holístico e ambiental como necessidade inafastável à vida humana, à manutenção ou à perpetuação de toda espécie de vida nos biomas como condição de sobrevivência e desenvolvimento da própria humanidade”.

1. HUMANISMO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Com o surgimento do denominado estado de direito, os assim chamados direitos humanos ou fundamentais passaram a figurar, com maior ou menor intensidade, nas constituições modernas, embora bem antes já se manifestara a preocupação com o humanismo por meio das conhecidas “declarações de direitos”, por exemplo, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 16 de junho de 17763, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 17764, e todas as demais declarações, tratados e pactos que se seguiram ao longo do tempo. Entre esses documentos e para o estudo do humanismo, Océlio Jesús de Morais (2021, p. 29-31) destaca os principais objetivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948: a) manter a segurança, partindo do pressuposto do reconhecimento da dignidade à família humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; b) promover os direitos humanos fundamentais em espírito de cooperação, como indispensáveis à valorização da pessoa humana, à igualdade de direitos dos homens e mulheres e como básicos à promoção do progresso social e melhores condições de vida, ampliando conceitualmente o espírito teleológico da visão humanista desses direitos; c) promover o desenvolvimento ou progresso social como compromisso de caráter social universal para melhorar as condições de vida. Tais direitos, ainda segundo o autor, “evidenciam o tipo de humanismo que as Nações Unidas prometeram respeitar, fazer respeitar e adotar ao desenvolvimento da personalidade humana e à evolução da sociedade”5 .

2. HUMANISMO E CAPITALISMO

Com propriedade, Sayeg e Balera (2011, p. 22) sustentam a necessidade de dar feição humanista ao capitalismo. Com efeito, dizem eles, “há que se levar ao capitalismo a perspectiva humanista cristã, cujo fio condutor, ao fim e ao cabo, faz coro ao papa Paulo VI, que afirmou ser ‘necessário promover um humanismo total. Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens?’” Referindo-se ao neoliberalismo institucionalizado pelo Consenso de Washington, em 1989, que teria consagrado o direito de propriedade privada e a livre iniciativa, os mesmos autores referem que tal sistema econômico, inobstante a crise mundial de 2008, “ainda prevalece na economia mundial, estabelecendo para o planeta a globalização econômica capitalista”, lembrando que em sua formação original “tal processo se estrutura juridicamente em uma concepção antijudicialista antropocêntrica, individualista e hedonista, apoiada no pensamento clássico de Adam Smith e David Ricardo”. Ainda segundo Sayeg e Balera, o mundo migrou para a ampla e global economia de mercado, constituindo a retomada concreta daquelas teorias de Smith e Ricardo baseadas na “premissa de que, se cada um dentro da comunidade agir em favor de seus interesses individuais, sem consideração com o outro, haverá maior eficácia econômica e que isso, no final das contas redundará naturalmente em prol do interesse coletivo”. Todavia, assim concluem: esse estado de coisas representa, sem mais nem menos, a transposição para a economia, e sob a complacência do direito, da lei biológica da seleção natural de Darwin – em que prevalecem no estado de natureza e selvageria e a desumanidade, sobrevivendo o mais apto com o descarte do inapto (p. 17; 23-24).

Também o conhecido comentarista econômico Martin Wolf afirma ser necessário urgentemente mudar o capitalismo, porque ele não funciona mais, há muita disparidade e as pessoas não confiam mais no sistema que, se continuar assim, corre o risco de não sobreviver. Em entrevista ao jornal romano La Repubblica, asseverou: É óbvio que a economia nos países ocidentais não está funcionando bem por causa dos problemas que se acumularam nos últimos quarenta anos, especialmente na última década. Podem ser resumidos em três pontos: queda de produtividade, aumento da desigualdade, poder extra financeiro (ALGAÑARAZ, 2020).

Ainda segundo Wolf, para as pessoas resta “uma profunda desilusão, a impressão de que o sistema capitalista não distribui mais um bem- -estar difuso: recompensa alguns poucos em prejuízo de muitos”, e esta falta de confiança fatalmente fará “com que o sistema perca sua legitimidade”. No Financial Times, Wolf já fizera outro diagnóstico terrível para a atualidade: Necessitamos de uma economia capitalista dinâmica que dê a todos uma crença justificada de que podem compartilhar os lucros. Em vez disso, temos cada vez mais capitalismo rentista instável, uma concorrência debilitada, um fraco crescimento da produtividade, uma alta desigualdade e, não por acaso, uma democracia mais degradada. A maneira como nossos sistemas econômicos e políticos funcionam deve mudar ou perecerão (ALGAÑARAZ, 2020).

O capitalismo passa por um período delicado e já se fala em um suposto regime pós-capitalista, afetado por uma visível desaceleração da economia, acentuada pelos efeitos da pandemia de covid-19, que também fez sobressair as desigualdades sociais. Muito já foi escrito sobre as transformações do capitalismo e até já se alude a outras formas de capitalismo6, 7.

Mackey e Sisodia (2021), precursores do movimento Capitalismo Consciente, fazem “uma defesa ardorosa e uma redefinição consistente do capitalismo de livre-iniciativa, em uma análise valiosa tanto para os profissionais como para as empresas que apostam em um futuro mais cooperativo e mais humano”, visando ao equilíbrio entre a lucratividade e a consciência social8. Em sentido contrário, recorde-se que Milton Friedman, agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 1976, argumentava que a finalidade da empresa é gerar lucro para os acionistas e investidores.

Rajendra Sisodia (2020), fundador do Capitalismo Consciente Internacional, explica que os princípios desse movimento “refletem valores humanos universais; eles transcendem as diferenças de história, idioma, religião e cultura. Em seu âmago, essas ideias estão fundamentadas na dignidade humana, liberdade e cuidado”. Referindo-se à dor e sofrimento de que todos padecem, acrescenta depois que “cada empresa precisa ser um negócio que cura; se não for parte da cura, ela é parte do sofrimento”9.

Outro modelo sugerido foi o do capitalismo inclusivo, definido por Thomas Eckschmidt (fundador do movimento do Capitalismo Consciente no Brasil) como “um esforço de engajamento de líderes empresariais, governamentais e da sociedade civil para tornar o capitalismo mais equipável, sustentável e inclusivo” e, depois, o capitalismo criativo, sugerido por Bill Gates na forma de uma nova abordagem dos negócios, no sentido de que “as grandes corporações deveriam integrar ‘fazer o bem’ em seus modus operandi”, dentro do conceito de que “o capitalismo pode ser melhorado”, sendo que o maior desafio deste modelo é “mudar o egoísmo, ou o egocentrismo que está embutido no conceito de livre mercado do capitalismo” (Eckschmidt, 2020).

Eckschmidt alude ainda à ideia do capitalismo 2.0, que ele considera “mais uma discussão pública do que um movimento liderado por um indivíduo ou um grupo”, surgida diante da “necessidade do modelo capitalista ser revisto e poder atender melhor as diferenças geradas pelo capitalismo tradicional”. Esclarece que o capitalismo 1.0 era o “capitalismo selvagem, cada um por si e um por todos, um capitalismo inconsciente” e o 2.0 “é caracterizado por um capitalismo regulado”, mas já se caminhando para o capitalismo 3.0, oriundo da “percepção de que os dois anteriores não funcionam e que o nível de consciência atual é muito maior que antes”, a fim de que “os negócios e os governos possam ser mais altruístas, deixando o egoísmo de lado para criar um valor coletivo” (Eckschmidt, 2020, p. 56-57).

O mesmo autor menciona mais o capitalismo compartilhado, que ele diz ser “menos um sistema econômico e mais um modelo de compartilhamento da riqueza econômica gerada por uma empresa, e na maioria das vezes está relacionado à forma de distribuir esse resultado”, como no caso da distribuição de lucros, opções de ações e bônus por desempenho10. Cita também o capitalismo colaborativo, ideia desenvolvida pela empresa de consultoria i-dev International, que o define como um modelo econômico, de política, abordagem ou estratégia de desenvolvimento pelo qual os interesses econômicos de um indivíduo, investidor, corporação ou um país são melhor oferecidos por meio de uma estratégia que busca melhorar o bem-estar, o poder aquisitivo e as capacidades de outros indivíduos, empresas ou países (ECKSCHMIDT, 2020, p. 68).

A experiência tem demonstrado que o capitalismo, como vem sendo aplicado até aqui, é menos ruim do que o comunismo e o socialismo, ambos já desacreditados onde foram experimentados. Falando das mazelas do liberalismo e da economia de mercado, próprias do capitalismo que qualificam de “ganancioso e irresponsável”, Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2011, p. 76) ressaltam que “tampouco o socialismo foi resposta sufi ciente, nem mesmo em favor dos pobres e excluídos, o que a Europa do Leste comprova historicamente”, acrescentando que não são obras do acaso “a emblemática incorporação da Europa Oriental à União Europeia, a dissolução da União Soviética e a reunificação alemã”. Como lembra o mesmo Thomas Eckschmidt (2020, p. 76), “o capitalismo é um excelente sistema para produzir riqueza, mas falhou na distribuição. O socialismo é um excelente sistema para distribuir riqueza, mas falhou na produção”.

Jérôme Baschet (2015, p. 600; 1.270), que qualifica o capitalismo como um “sistema humanicida”, sustenta que “a ameaça que pesa sobre a humanidade e, mais ainda, o desejo de uma vida digna para todos indicam a urgência: sair do capitalismo”. Para esse autor, “sem a imaginação de um mundo pós-capitalista possível, necessário e urgente, a luta anticapitalista carece de sentido verdadeiro”, urgência assinalada também por Martin Wolf. Eckschmidt igualmente alude a essa “feroz urgência do agora”, lembrando que no Fórum Econômico Mundial de 2020 salientou-se a necessidade de um modelo novo, chamado de stakeholder capitalism, “em que se reconhece a importância de todos prosperarem juntos ao invés do progresso exclusivo dos acionistas” (Eckschmidt, 2020, p. 87; 95).

Como advertia Louis-Joseph Lebret (1962, p. 33), “o capitalismo não resistirá aos ataques que lhe são dirigidos de todos os lados, caso se manifeste incapaz de se humanizar num plano mundial, aceitando os riscos do desenvolvimento harmonioso do conjunto das regiões subdesenvolvidas”. E conclui: “Sua força desaparecerá na medida em que não for capaz de se transformar, a fim de instaurar uma economia humana numa civilização de solidariedade universal.”

Em suma, o capitalismo precisa ser reinventado para beneficiar a todos, e não apenas o detentor do capital, porque, como aponta Lebret (1962, p. 27), “o capitalismo liberal não foi capaz de se subordinar ao humano”. No dizer de John Mackey (apud Eckschmidt, 2020, p. 86), “juntos os líderes empresariais podem liberar o extraordinário poder das empresas e do capitalismo para criar um mundo onde todos vivam vidas de propósito, amor e criatividade”. Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2011, p. 181; 202) relembram a lição de Paulo VI na encíclica Populorum Progressio, de que se deve aceitar o capitalismo, “mas sem esquecer de que se trata de obra humana; então, que não seja desumano”. Daí a feliz proposta desses autores de um capitalismo humanista que, “no ambiente da regência jurídico-econômica, tem como finalidade a concretização multidimensional dos direitos humanos, com vistas à satisfação da dignidade do homem e de todos os homens, como também do planeta”, “um capitalismo que observa e respeita os direitos humanos”.

3. HUMANISMO, SOLIDARISMO E FRATERNIDADE

O capitalismo humanista de Sayeg e Balera passa também, necessariamente, pelas ideias de solidariedade social e fraternidade, lembrando o lema traçado por Robespierre na revolução francesa e atualmente bastante esquecido.

Com efeito, não é possível uma sociedade humanista sem a existência de ampla solidariedade social e espírito fraternal. No texto constitucional vigente, há expressa referência à construção de uma sociedade solidária como um dos objetivos fundamentais da república (art. 3º, i) com inspiração em uma sociedade fraterna (preâmbulo).

O substantivo “solidariedade” pode ter origem na expressão latina in solidum, no sentido de um todo ou totalidade, passando pelo francês do século 18 solidarité, utilizada por Durkheim com a ideia de elemento que forma espírito de coesão, integração e interdependência entre os membros de um grupo social, fazendo-as se sentirem partes integrantes desse grupo. Em visão sociológica, a expressão tem sido usada com a ideia de sentimento de ajuda mútua ou reciprocidade, compadecimento com as dificuldades alheias, companheirismo, compartilhamento das emoções e necessidades de outrem, identificação com o sofrimento alheio etc., sentimentos hoje já não são tão frequentes na sociedade em curso, em boa parte causada pelo individualismo e egocentrismo. Em profundo trabalho sobre o tema, inclusive em suas repercussões jurídicas, e não apenas sociológicas, Javier de Lucas (1998, p. 102) mostra que na sociedade atual, mais do que nunca, é possível a vida solitária, com a geração de verdadeiras multidões solitárias, e alega que um dos mais evidentes riscos da atual civilização é o de preocupar-se demasiado com os que vivem em opostos, “ao mesmo tempo que se ignoram os problemas e misérias dos que nos rodeiam, problemas e misérias que, praticamente, há que se ir apartando para poder respirar”. De fato, observa-se na sociedade atual, em que tudo é fugaz e voltado para o aqui e agora, um crescente individualismo, caracterizado por lamentável egocentrismo, a antítese da empatia e da solidariedade, sentimentos que deveriam nortear as relações sociais, individualismo presente até nos vínculos mais elementares como a família, o trabalho e a escola, formando um individualismo coletivo (se assim se pode dizer) que causa a fragmentação do tecido social em função de estar ausente o amálgama da solidariedade.

Ao propor seu manifesto por uma civilização solidária, Lebret (1962, p. 6) buscou lançar “um grito sufi cientemente forte para transpor a barreira da surdez generalizada, bastante humano para ser acolhido com simpatia, e construtivo a ponto de ser capaz de despertar esperança”.

Também a fraternidade “é reconhecida, em geral, como objeto da filosofia ou mesmo da política, mas não como categoria jurídica”, diz Carlos Augusto Machado (2021), que logo ressalva: “No entanto, a fraternidade – enquanto valor – já vem sendo proclamada em Constituições modernas, ao lado de outras categorias historicamente consagradas, como a igualdade e a liberdade”. O autor acrescenta, mais além: A sociedade, os ordenamentos jurídicos, os Estados, enfim, ao consagrarem os princípios da igualdade e da liberdade, traduzidos no plano jurídico, como averba Maria Voce, reforçaram somente os direitos individuais. Tal postura não é suficiente e não fornece respostas satisfatórias para assegurar uma vida de relações e de comunidade, pois se ressente de outro valor fundamental: a fraternidade (p. 1; 16).

Por fim, conclui Machado (2021, p. 1) que em alguns ordenamentos jurídicos contemporâneos a fraternidade “não é somente um valor de natureza puramente religiosa – apesar de no Cristianismo encontrar a sua gênese – ou de ideologia política, mas uma categoria constitucional, ponto de equilíbrio entre a liberdade e a igualdade”.

Também Fernando Horita (2016, p. 79-88), ao investigar os estudos, eventos e produção científica nessa seara nas últimas décadas, em várias partes do mundo, leva em conta o princípio da fraternidade “como uma autêntica categoria jurídica e que essa categoria não exclui outras, como a religiosa e a política”. Questionando sobre eventual positivação jurídica da fraternidade, esse autor afirma que isso não poderia gerar um instrumento de coação: “Ou seja, a norma jurídica não pode ser pensada como uma forma de impor a fraternidade, pelo contrário, deve-se pensá-la como meio de instigar para desenvolver essa fraternidade”. Em outro estudo, o mesmo autor salienta que o princípio da fraternidade permaneceu esquecido, mas entende que “a realização da fraternidade interessa tanto ao Direito como ao Estado, deixando viva e colocando-a como direito fundamental”. Considera, pois, que o direito e a humanidade “necessitam do aspecto fraternal, de uma nova filosofia de vida, que agirá com consciência, responsabilidade, igualdade, liberdade e fraternidade”.

Heloisa Siqueira e Elizete de Mello (2021) referem-se a um direito constitucional fraterno como um ramo de estudos acerca do texto constitucional à luz do princípio da fraternidade. Recordam que esse princípio muitas vezes confundiu-se com o da solidariedade social, mas fazem a distinção: Tratar-se de fraternidade é o equivalente a investigar uma igualdade de dignidade entre as pessoas, independente do modelo de organização em que vivem. Já a solidariedade implica em comunhão de interesses, atitudes ou sentimentos por parte dos membros de um grupo, com o intuito final de autodefesa ou de resistir às investiduras de forças ou agentes.

Concluem as autoras seu estudo consignando que a fraternidade “evoluiu na sociedade até atingir o patamar de categoria jurídica” porque, antes restrita à órbita religiosa, atualmente “é vista como um princípio a ser observado nas sociedades democráticas, garantindo um equilíbrio entre os dois axiomas mais prestigiados desde a revolução francesa: igualdade e liberdade”.

Sayeg e Balera (2011, p. 127) propagam a adoção desse princípio no âmbito do Poder Judiciário para uma prestação jurisdicional humanista: A sabedoria do povo aponta seis passos para a aplicação da Lei Universal da Fraternidade, os quais devem ser percorridos pelo magistrado no exercício da prestação jurisdicional. São eles: (1) considerar todas as partes envolvidas, tendo em mente que são pessoas humanas, revestidas de dignidade; (2) buscar perceber a aflição em que se encontram diante do caso concreto; (3) ouvir, com atenção, a versão e as razões de cada uma delas; (4) colocar-se na situação em que elas se encontram; (5) interagir com elas; (6) aplicar a decisão mais fraterna, que será a que satisfaça a dignidade de todas as pessoas envolvidas, sendo misericordioso onde houver miséria.

Com efeito, já há no âmbito do Judiciário brasileiro algumas decisões fundadas no princípio da fraternidade, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça (stj)11 e do Supremo Tribunal Federal (stf)12. Atende-se, assim, aos anseios de Ricardo Sayeg e Wagner Balera (2011, p. 125): “O humanismo antropofilíaco espera, então, que se promova e assegure a dignidade daqueles que estão submetidos ao Poder Judiciário, e emprega a misericórdia para combater a miséria nas decisões judiciais, não lhe sendo alheio ou alienado.” Como pregam Sayeg e Balera, “o homem, a humanidade e o planeta devem ser fraternalmente tutelados”, para que, no capitalismo, os direitos humanos sejam concretizados em todas as suas dimensões pelo dever natural de fraternidade”, constituindo um direito subjetivo natural, em especial dos excluídos e exigível não só do Estado, mas também, horizontalmente, da sociedade civil e de todos os homens” (2011, p. 215).

CONCLUSÃO

Do exposto, algumas conclusões podem ser extraídas, sem a presunção de serem definitivas ou mesmo corretas e inquestionáveis; muito ao contrário, são temas e opiniões abertos ao debate.

O mundo passa periodicamente por algumas crises, inclusive de ordem econômica e debitadas ao neoliberalismo, e a globalização se encarrega de espraiar por quase todas as nações os efeitos nefastos de um capitalismo que já foi chamado de selvagem por visar apenas ao lucro e não ao ser humano. Inobstante, parece que esse sistema ainda é menos ruim do que outros, como o socialismo e o comunismo, embora já apresente também sinais de esgotamento e seja alvo de críticas que propõem sua urgente e inadiável transformação. Entre as várias teorias suscitadas, destaca-se a que apregoa um novo capitalismo, consciente, humanizado e holístico, tendo como destinatário o ser humano em toda sua dignidade e respeitando os direitos humanos em todas as suas dimensões.

Para tanto, é preciso voltar o olhar para a solidariedade social, entendida como um sentimento de coesão, de auxílio mútuo, de compreensão com o sofrimento e as necessidades do outro, de companheirismo e de empatia dentro do grupo social. O homem, por natureza, não vive isolado e com independência, mas sim em grupo (de maior ou menor proporção), de forma integrada e interdependente.

É também imprescindível resgatar a fraternidade entre os homens, sentimento estimulado com o surgimento do cristianismo e que constituiu um dos princípios básicos da revolução francesa. Ao passo que a liberdade e a igualdade ganharam espaço e proteção no âmbito do direito, o princípio da fraternidade ficou adormecido por 200 anos, e só mais recentemente tornou-se objeto de novas manifestações e passou a ser reconhecido como categoria jurídica e defendido como um princípio a nortear também a interpretação e aplicação do direito. A solidariedade social e a fraternidade universal são elementos essenciais à implantação de um capitalismo humanista visando à transformação da sociedade individualista e egocêntrica em sociedade livre, justa, solidária e fraterna. É o que se almeja e se espera.

NOTAS

Aqui merece destaque sua obra em conjunto com Ricardo Sayeg, intitulada O capitalismo humanista.

Por exemplo, Océlio de Jesús Carneiro de
Morais (cujo ensaio sobre humanismo foi
prefaciado por Wagner Balera), para quem
o humanismo não é uma ideologia, mas
princípio ou fi losofi a de vida que coloca as
pessoas em primeiro lugar, na primazia das
coisas entre todas as coisas.

Segundo a qual “[…] todos os homens são,
por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos
quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo
privar ou despojar seus pósteros e que são:
o gozo da vida e da liberdade com os meios
de adquirir e de possuir a propriedade e
de buscar e obter felicidade e segurança”
(DECLARAÇÃO de Direitos do Bom Povo de
Virgínia. 16 jun. 1976).

Segundo a qual “todos os homens foram
criados iguais, que foram dotados pelo seu
Criador de certos direitos inalienáveis, que
entre estes se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade” (DECLARAÇÃO unânime dos treze Estados Unidos da
América. 4 jul. 1776. Tradução de Salvador
Mourelo).

MORAIS, Océlio de Jesús Carneiro de. Humanismo: e depois de ontem. Curitiba: Alteridade, 2021, p. 29-31.

Por exemplo: 1) BASCHET, Jérôme. Adiós al
capitalismo: autonomía, sociedad del buen
vivir y multiplicidad de mundos. Barcelona:
Ned ediciones, 2015; 2) WRIGHT, Erik Olinx.
Como ser anticapitalista no século XXI?
Tradução de Fernando Cauduro Pureza.
São Paulo: Boitempo, 2019; 3) MASON,
Paulo. Pós-capitalismo: um guia para nosso futuro. Tradução de José Geraldo Couto. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2017.

Por exemplo: 1) MACKEY, John; SISODIA,
Rajendra. Capitalismo consciente: o espírito heroico dos negócios. Tradução de
Rosemarie Ziegelmaier. Rio de Janeiro:
Alta Books, 2018; 2) ECKSCHMIDT, Thomas.
Jornada ao capitalismo consciente: do propósito ao lucro através da implementação
dos fundamentos do capitalismo consciente. 2020; 3) SISODIA, Rajenda; ECKSCHMIDT, Thomas; HENRY, Timothy. Capitalismo
consciente: guia prático: ferramentas para
transformar sua organização. Tradução de
Silvia S. Morita. Belo Horizonte: Editora
Voo, 2019.

Comentários disponíveis em: https://
www.amazon.com.br/Capitalismo-
-consciente-esp%C3%ADrito-heroico-neg%C3%B3cios-ebook/dp/
B07H9HB8NV/ref=pd_sbs_1/147-
8754254-0285753?pd_rd_
w=jXWZg&pf_rd_p=8097bfa3-b5f9-
418d-8cea-cd5e7772e537&pf_rd_
r=90K81E10QN53K7SBGV7Z&pd_
rd_r=1989f6ac-9df3-4a20-bebc-
-7281ccc6cc95&pd_rd_wg=fH1R4&pd_
rd_i=B07H9HB8NV&psc=1, Acesso em: 27
set. 2021.

SISODIA, Rajendra. Prefácio. In: ECKSCHMIDT, Thomas. Jornada ao capitalismo
consciente: do propósito ao lucro através
da implementação dos fundamentos do
capitalismo consciente. p. 11-2.

Idem, ibidem. p. 64.

Autos n. 0056922-61.2020.8.19.0000 (RHC136961) e 0040462-44.2020.3.00.0000
(HC-562452).

12 Autos n. 00800-18.2008.0.01.0000
(ADPF-132), 0001586-13.2005.1.00.0000
(Pet 3388) e 0002323-70.2005.0.01.0000
(ADI-3510).

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e deve ser mudado urgentemente”, avalia Martin Wolf, o mais infl uente comentarista econômico liberal. Clarín, Buenos Aires, 23 set. 2019.
Tradução de Cepat. [s.p.]. Disponível em: http://
www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592868-o-
-capitalismo-nao-funciona-e-deve-ser-mudado-
-urgentemente-avalia-martin-wolf-o-mais-infl uente-comentarista-economico-liberal. Acesso
em: 20 out. 2020.
BASCHET, Jérôme. Adiós al capitalismo: autonomía, sociedad del buen vivir y multiplicidad de
mundos. Barcelona: Ned ediciones, 2015.
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de Virgínia. 16 jun. 1776. Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.
php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%
C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-
-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/
declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-1776.html. Acesso em: 20 abr. 2021.
DECLARAÇÃO Unânime dos Treze Estados
Unidos da América. 4 jul. 1776. Tradução de
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agal-gz.org/faq/lib/exe/fetch.php?media=gze-
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consciente: do propósito ao lucro através da implementação dos fundamentos do capitalismo
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HORITA, Fernando Henrique da Silva. A fraternidade em debate: refl exos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Thesis Juris, São Paulo, v.
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    prático: ferramentas para transformar sua organização. Tradução de Silvia Morita. Belo Horizonte: Editora Voo, 2019.
    WRIGHT, Erik Olinx. Como ser anticapitalista no
    século XXI? Tradução de Fernando Cauduro Pureza. São Paulo: Boitempo, 2019

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