Vulnerabilidade laboral sob efeito da pandemia

Crise sanitária afetou condições físicas e metais de trabalhadores gerando consequências em organizações. -- Por Tereza Aparecida Asta Gemignani Desembargadora do TRT 15 -- (Bonijuris #673 Dez 2021/ Jan 2022)

Tereza Aparecida Asta Gemignani DESEMBARGADORA DO TRT 15

A CRISE SANITÁRIA AFETOU A CONDIÇÃO FÍSICA E MENTAL DO EMPREGADO, GERANDO CONSEQUÊNCIAS TAMBÉM NA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA DO TRABALHO

“Assim, toda a questão se reduz a isto:

pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?”

(PAUL VALERY)

A pandemia provocada pelo novo coronavírus acelerou de forma avassaladora os efeitos desencadeados pela revolução tecnológica que teve início nas últimas décadas do século 20. O isolamento social alterou de maneira significativa os modos de viver e trabalhar. Se, por um lado, intensificou o teletrabalho e o home office, por outro aumentou as atividades desenvolvidas mediante a utilização de plataformas. Em todos os casos, colocou em xeque as normas de proteção até então aceitas e revelou a necessidade de superar as novas vulnerabilidades.

Este artigo se propõe a oferecer reflexões sobre como esse desafio pode ser enfrentado.

1. O PIONEIRISMO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

Em meados do século passado, a industrialização, impulsionada pelo cenário mundial de reconstrução do pós-guerra, mudou a matriz produtiva no Brasil, provocou o êxodo rural e levou o país a um movimento de urbanização. O trabalho prestado em grandes plantas industriais agrupou trabalhadores, que passaram a conviver por longas horas dentro de um mesmo ambiente. Em pouco tempo, perceberam que a solidariedade dos interesses comuns fortalecia as reivindicações por melhores condições de trabalho.

Destarte, é possível considerar a solidariedade como um dos valores fundantes do direito do trabalho, conceito expressamente reconhecido pela Constituição Federal de 1988, ao proclamar no art. 3º, I, que construir uma sociedade solidária constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

O fortalecimento dos laços tecidos por interesses comuns dessa nova categoria de trabalhadores deu respaldo aos pleitos que se destinavam a manter o poder aquisitivo dos salários, o que contribuiu para a formação de um mercado doméstico que impulsionou o desenvolvimento econômico do país.

Além de conferir respaldo normativo para regulamentar essas novas relações, o direito do trabalho atuou de forma pioneira na proteção dos direitos de personalidade daqueles que não tinham patrimônio. Diferentemente do ordenamento civilista da época, reconheceu a condição de titular de direitos àqueles que até então eram considerados apenas devedores de obrigações, que nada mais possuíam senão sua força de trabalho para sobreviver com dignidade.

2. A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

No mencionado contexto, o direito do trabalho também deu a partida para o reconhecimento da importância da diversidade e da inclusão, que devem pautar o modelo de sustentabilidade, conferindo maior proteção aos trabalhadores mais frágeis e vulneráveis, como jovens e mulheres, notadamente nos períodos de gestação e lactação, assim como os que atuavam em atividades que exigiam maior desgaste ou exposição a riscos, como demonstram inúmeros preceitos da CLT, que passou a reger as relações trabalhistas na segunda metade do século 20.

Assim, é inafastável a constatação de que, desde sua gênese, o direito do trabalho vislumbrou fortes efeitos inter-relacionais entre sustentabilidade, cidadania e trabalho decente.

A implementação de tais preceitos nem sempre foi fácil, mas a consciência de que a referida tríade sempre caminhava junto deu força à ampliação do arcabouço protetivo para outras situações de vulnerabilidade, como ocorreu com a Lei 13.146/15, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, destinado a assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa com deficiência, visando à inclusão social dela e ao reconhecimento de sua cidadania.

Porém, nas últimas décadas do século passado, o mundo do trabalho começou a mudar, quando teve início uma revolução tecnológica de expressiva amplitude, que passou a formatar a indústria 4.0, acentuando seus efeitos no início do século 21, com o advento da chamada gig economy.

3. A REVOLUÇÃO 4.0 E A GIG ECONOMY

Em decorrência das inovações trazidas pela revolução 4.0 e pela gig economy, mudaram os tempos do trabalho, que deixaram de ser uniformes, compactados em horários fixos previamente determinados, passando a admitir a prestação laboral em horários diversos e flexíveis. Multiplicaram-se os lugares de trabalhar, que deixaram o antigo modelo de concentração em um único espaço físico, para permitir a atuação da empresa em diferentes locais, até em outros países, abalando os antigos cânones que regiam as relações trabalhistas.

As ferramentas digitais possibilitaram a prestação laboral fora do local físico delimitado pelo empregador, o que levou à dispersão dos trabalhadores.

Mas não é só.

A prestação do trabalho sob plataforma, implementada pela gig economy, cresceu de forma exponencial durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus. A necessidade de distanciamento social acabou com a concentração de trabalhadores no mesmo espaço físico em inúmeras atividades, colocando em xeque a antiga configuração do princípio da solidariedade.

Ademais, a realidade demonstrada pela organização produtiva por plataformas desmistificou alguns conceitos, como os que apregoavam que a revolução 4.0 disponibilizaria ferramental tecnológico para reduzir as jornadas de trabalho e ampliar os tempos de lazer.

O que se constatou, foi exatamente o contrário.

4. FORDISMO DIGITAL EM REDE?

A atuação dos trabalhadores pela utilização dos meios digitais passou a ser exigida em um ritmo frenético, violando o relógio biológico e causando elevado número de adoecimentos físicos e mentais. Além disso, passou a ser cada vez mais fragmentada, marcada pelo acentuado desconhecimento da integralidade dos novos procedimentos, que cada vez mais tiram seu poder de decisão, limitando-o a tarefas repetitivas dentro de um pequeno nicho marcado pelo “sistema”, que ferrenhamente veda seu acesso além desses limites.

Quando a intensidade do trabalho digital ou sob plataforma insiste em ultrapassar os limites do relógio biológico do corpo humano, pretendendo transformá-lo em uma máquina, ao exigir longas horas que levam ao adoecimento físico e mental, para atender ao ritmo do “sistema informatizado”, estaríamos vivendo a volta

repaginada do modelo fordista com todas suas mazelas correlatas, agora de maneira muito mais perniciosa em razão de ocorrer também em rede, controlando não só o corpo, mas também a mente, as emoções e os afetos. Estaria subliminarmente violando os direitos de personalidade do trabalhador?

A precarização das condições de saúde e segurança vem deslocando o trabalho decente para um horizonte cada vez mais distante. A redução do valor pago pelos serviços prestados, muitas vezes pretensamente justificada pela crise econômica provocada pela pandemia de covid-19, compromete a capacidade do trabalhador de manter sua subsistência, aumentando a vulnerabilidade daquele que depende de seu trabalho para sobreviver, o que amplia a exclusão e compromete a cidadania.

Assim sendo, é possível constatar que a revolução 4.0 e a gig economy, cujos efeitos foram potencializados pelo advento da pandemia, estão conferindo nova articulação de poder na sociedade contemporânea.

Nas relações de trabalho, a assimetria se acentuou de maneira mais insidiosa e contundente, quando as novas formas de controle passaram a ocorrer de maneira mais difusa, velada e sub-reptícia, notadamente quanto à utilização de algoritmos, sem que o trabalhador tenha a mínima noção dos critérios adotados para sua operacionalização.

Neste contexto, é oportuno trazer à colação as reflexões de Michel Foucault1, ao tratar da microfísica do poder na sociedade contemporânea:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede.

5. AUMENTO DA INTOLERÂNCIA E DA DISCRIMINAÇÃO

Nas novas modalidades de organização produtiva, desencadeadas pela revolução 4.0, que acentuaram a assimetria de poder nas relações horizontais, as situações de discriminação não só se intensificaram, mas também ampliaram seus efeitos de exclusão, notadamente com a maior utilização dos algoritmos para admitir e demitir trabalhadores, assim como monitorar a produtividade, eficiência e desempenho de sua atuação, sem que o trabalhador pudesse ter qualquer informação ou acesso aos critérios adotados para esse monitoramento.

A microfísica do poder traça um movimento claro de retrocesso, marcado pelo apequenamento da condição de sujeito e aumento da situação de objeto daquele que, dependendo de seu trabalho para sobreviver, cada vez mais sofre os efeitos de algo que não consegue controlar.

A pandemia agravou essa situação, ao provocar a redução da atividade econômica e levar trabalhadores pouco qualificados a perderem seus empregos e suas fontes de subsistência. Relatório elaborado pelo Banco Mundial, intitulado “Emprego em crise: trajetória para melhores empregos na América Latina pós-covid 19”2, indica que o “efeito cicatriz” da crise pode perdurar por vários anos, comprometendo não só o acesso ao trabalho decente, mas também o desenvolvimento sustentável do próprio país.

Nesse panorama, o monitoramento da empregabilidade por algoritmos vem tornando cada vez mais difícil o acesso a pessoas com mais de 50 anos e baixa qualificação, mulheres com filhos pequenos e também para os jovens, que estão precisando entrar agora no mercado de trabalho, muitas vezes sem a oportunidade de concluir formação profissional adequada para tanto.

Mas não é só.

A redução da interação social provocada pela pandemia tem aumentado os índices de intolerância nas relações humanas e ampliado as ocorrências de violência e assédio, inclusive por meio digital, esgarçando os laços da cidadania.

Nesse cenário, como as novas formas de organização produtiva passaram a operar com mais intensidade em rede, a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores se acentuou, provocando externalidades negativas quanto ao comprometimento do poder aquisitivo para bens e serviços, além da elevação dos custos provocados por afastamentos e aposentadorias precoces, decorrentes das doenças físicas e mentais, as quais vêm ocorrendo com maior intensidade, prejudicando, ao fim e ao cabo, todos os elos que compõem essa cadeia.

Em um ambiente de organização produtiva em rede, as externalidades produzidas por uns impactam a todos os demais, justamente por estarem em constante interconexão, assim demonstrando a importância de ressignificar o conceito de responsabilidade adotado até aqui.

Não por acaso, vem crescendo a conscientização da necessidade de as organizações produtivas pautarem suas condutas pela diretriz estabelecida pelo

comprometimento com questões ambientais, sociais e de governança (ESG)3, ante a constatação de que, em uma realidade cada vez mais complexa e interconectada, é fundamental que se tenha uma visão mais sistêmica não só de todo o processo produtivo, mas principalmente de seus efeitos e externalidades.

Portanto, não há mais como admitir que a empresa gere riquezas apenas para si mesma. É preciso que traga benefícios para os trabalhadores, que com ela interagem nas diferentes etapas do novo modelo de organização produtiva, provocando também externalidades positivas para toda a comunidade ao seu entorno.

Apesar de se tratar de uma iniciativa voluntária, a adesão empresarial ao Pacto Global4 vem se tornando cada vez mais requisitada para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania, pela conscientização de lideranças comprometidas e inovadoras, pois quem integra o Pacto Global também assume a responsabilidade de contribuir para o alcance dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS).

“Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos” é o objetivo 8 da Organização das Nações Unidas, que integra a Agenda 2030, aprovada por 193 países-membros, em 2015. Assim, reconhecem a importância de substituir a antiga mentalidade predatória, que provoca externalidades negativas, por externalidades positivas, para fazer valer os marcos de trabalho decente, que operam o desenvolvimento sustentável pelo fortalecimento da cidadania, escopo que se mantém mesmo quando a prestação laboral não ocorre mais em um único espaço físico nem na mesma unidade de tempo.

6. RESSIGNIFICAR O CONCEITO DE RESPONSABILIDADE

Neste momento em que ocorre a intensificação da terceirização, inclusive na atividade-fim, bem como novos tipos de organização produtiva por plataformas, as relações de trabalho deixam de ser singelamente verticais entre o que contrata e aquele que presta trabalho, para se transformarem em um emaranhado horizontal inter-relacional de diferentes atores, como propõem os novos modelos pautados pela gig economy, em que há uma plataforma que possibilita o acesso, um trabalhador que presta o serviço, um consumidor que demanda e várias empresas que, produzindo o bem solicitado, atuam como vasos comunicantes em diferente temperatura e pressão, criando um novo sistema de trabalho, que põe à prova todo o marco conceitual, que até agora direcionou a caracterização das obrigações devidas de parte a parte nestas duas vertentes distintas: responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva.

6.1. Da responsabilidade subjetiva

No que se refere à responsabilidade subjetiva, o direito do trabalho até aqui vem aplicando os critérios prescritos nos arts. 186 e 927, caput, do Código Civil, in verbis:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Entretanto, na realidade complexa, em que as relações obrigacionais vão se formando digitalmente em intensidade que não é constante nem linear, mas cada vez mais dúctil e flexível, dependendo da natureza específica e peculiar da maneira como o trabalho é prestado, a configuração da responsabilidade passa a ser repensada.

Ademais, quando os elos obrigacionais também vão se processando em rede, exsurge a necessidade de reconhecer que a imputação de responsabilidade também deve considerar a importância de evitar o abuso de direito, agora passível de ocorrer com muito mais facilidade e frequência, pela atuação concomitante e entrelaçada de diferentes atores nas novas formas de organização produtiva, que pautam a terceirização e a atuação das plataformas digitais.

A boa-fé e o reconhecimento da função social do contrato, notadamente o trabalhista, aqui considerado em sua acepção ampla, que não se restringe só os celetistas, são cada vez mais valorizados pelo sistema jurídico normativo, assim respaldando a aplicação mais assertiva do art. 187 do Código Civil, que disciplina a matéria nos seguintes termos: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Destarte, a necessidade de debelar o abuso de direito, por aqueles que deixam de propiciar as condições necessárias para que o trabalho ocorra de forma decente5, torna imperioso ampliar os limites das obrigações de cada um dos participantes, que atuam de forma entrelaçada em concomitante interconexão, nos novos modelos de organização produtiva, exigindo uma nova interpretação do conceito de responsabilidade.

6.2. Da responsabilidade objetiva

Quanto à responsabilidade objetiva, o direito do trabalho tem aplicado os parâmetros previstos no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, ao estabelecer que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

A configuração da responsabilidade objetiva, pela exploração econômica de atividade que, por sua natureza, implica risco para os direitos de outrem, passou a revestir-se de mais importância em decorrência da aceleração não só da automação tecnológica atual, mas também dos novos tipos de organização produtiva, notadamente os que operam por plataformas.

A horizontalidade interconectada das cadeias de comando, que caracterizam a terceirização e o acesso por plataformas, com a crescente atuação das entidades produtivas em rede, tem levado à pulverização da imputação de responsabilidade e à diminuição de sua aplicação, causando déficit do necessário enforcement para induzir à prática de atos que possam reduzir os riscos à saúde e segurança nas relações de trabalho.

Nesse cenário, a percepção da necessidade de ampliar a aplicação da responsabilidade objetiva fica clara na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ao garantir ao trabalhador, que atua em atividade de risco, o direito à indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador, fixando o Tema 932 com a seguinte tese6:

O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva, e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade.

Os casos em que há previsão legal não apresentam dificuldades, mas a segunda referência adotada pelo STF como ratio decidendi, que reconhece respaldo para imputação da responsabilidade objetiva quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial com potencialidade lesiva, que implique ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade, abre uma ampla gama de questionamentos.

Gizar como critério definidor o conceito de “risco especial”, decorrente da natureza da atividade explorada, enseja uma leitura mais abrangente da teoria do risco criado e abre a possibilidade de imputação mais ampla da responsabilidade objetiva, em conformidade com o preceituado nos arts. 932, III, e 933 do Código Civil, assim sustentando a aplicação desse critério a todos os participantes da relação de trabalho, mesmo que não atuem na condição de empregador. Confira-se:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: […] III − o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele (grifamos).

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos (grifamos).

Notadamente nas questões que envolvem saúde e segurança, essa nova perspectiva atrai, por arrastamento, o arcabouço doutrinário do direito ambiental para as relações trabalhistas (não só celetistas).

O respaldo doutrinário se reveste de peculiar importância quando os novos modelos de organização produtiva interconectada se processam de forma horizontal em rede, mediante terceirização ou sob demanda em plataforma, passando a exigir a ressignificação do conceito de responsabilidade a fim de evitar a fragmentação que fragiliza o enforcement da normatividade jurídica.

Isso porque o conceito de responsabilidade é nuclear no sistema jurídico. Sem adoção de critérios consonantes com a realidade para fixação de responsabilidade, não há direito, notadamente quando a sociedade contemporânea vive um esgarçamento desse conceito.

Hoje, ninguém se acha mais responsável por nada. Como observa o sociólogo Zygmunt Bauman7, ao examinar a sociedade em que vivemos, a “escolha racional na era da instantaneidade significa buscar a gratificação evitando as consequências e, particularmente, as responsabilidades que essas consequências possam implicar”.

É como se a fluidez que marca a sociedade líquida transformasse os laços sociais em fiapos diáfanos, de fácil e imediato rompimento por qualquer movimento. As relações humanas nunca precisaram tanto do norte do direito, da segurança proporcionada por parâmetros jurídicos de imputação de responsabilidade para manter a coesão social necessária para garantir a cidadania e respaldar a sustentabilidade do desenvolvimento.

Por isso, diferentemente dos que entendem que chegamos “ao fim do direito do trabalho”, na verdade estamos assistindo ao seu renascimento sob outras perspectivas, que passam pela ressignificação do conceito de responsabilidade nas relações laborais, tendo por base o padrão axiológico da proteção aos que são mais vulneráveis.

Destarte, quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, ou seja, in re ipsa, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva que leve ônus maior ao trabalhador do que aos demais membros da coletividade, é cabível a imputação de um novo tipo de responsabilidade estrutural aos que atuam nos diferentes elos dos novos modelos de organização produtiva, por serem beneficiários do trabalho prestado.

7. A RESPONSABILIDADE ESTRUTURAL

Neste momento em que a sociedade passa por mudanças profundas, que tendem a se intensificar com a implantação do sistema 5G e de novos modelos de organização produtiva, o conceito de “subordinação estrutural” vai perdendo força e se torna incabível para os novos tipos de contratação trabalhista, que operam horizontalmente em rede.

Porém, quando a intensidade do trabalho digital ou sob plataforma insiste em violar o relógio biológico e os limites do corpo humano, pretendendo transformá-lo em uma máquina, ao exigir longas horas que levam ao adoecimento físico e mental para atender ao ritmo do “sistema informatizado”, nunca o direito do trabalho foi tão importante para proteger a saúde da pessoa que trabalha.

Além disso, contribui também para a saúde financeira das empresas e o fortaleciment

sustentável do país pela valorização da cidadania, porque a construção de um ambiente de trabalho plural reduz a desigualdade, a pobreza, o risco de desagregação social e a violência urbana.

Mais do que nunca é necessário construir um conceito de “responsabilidade estrutural”, que possa envolver todos os que participam do processo produtivo a fim de preservar a saúde física e mental, assim como os direitos de personalidade de quem trabalha, independentemente da natureza jurídica do vínculo contratual.

Notadamente, quando o controle por algoritmos está em toda parte, registrando e cronometrando nossas ações e opções, abrindo insidiosa possibilidade de discriminação, o desafio do direito do trabalho consiste em evitar que a pulverização da responsabilidade atue como passaporte para a impunidade, acentuando a precarização.

Além disso, é preciso impedir que a discriminação por algoritmos viole o direito fundamental ao trabalho, principalmente dos mais vulneráveis, como jovens que não tiveram condições de receber formação profissional adequada, mas que precisam trabalhar para sobreviver; mulheres que estão nas fases de gestação ou lactação e com filhos pequenos, as quais muitas vezes são as únicas provedoras nas famílias monoparentais; adultos com mais de 50 anos que, em decorrência da baixa qualificação, estão alijados de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, mas precisam de recursos para sobreviver; e pessoas com deficiência, que, apesar do arcabouço normativo avançado que possuímos, na prática encontram muitas barreiras para encontrar trabalho digno.

Repristinando a atuação de seus primórdios, o direito do trabalho se torna cada vez mais necessário para garantir a paz social pela valorização da diversidade e inclusão, estímulo à tolerância e boa convivência com as diferenças, assim resgatando o âmago de nossos marcos civilizatórios pela priorização do trabalho decente.

CONCLUSÕES

Embora o modelo de organização produtiva, marcado pela concentração de trabalhadores em determinados locais e horários fixos não seja mais predominante, é possível vislumbrar que o resgate dos valores que formataram o direito do trabalho desde os seus primórdios se revela imprescindível para reconstruir novos parâmetros de proteção para abranger o universo dos múltiplos atores, que atuam de forma concomitante e interconectada em redes.

Nesse cenário, o aumento da vulnerabilidade dos trabalhadores, provocado pela pandemia, vem exigindo a formatação do conceito jurídico de “responsabilidade estrutural” nas relações de trabalho em sua acepção ampla, ou seja, não restrita apenas aos contratados pelo regime celetista.

Essa ressignificação conceitual implica reconhecer que as condições que garantem o trabalho decente, longe de serem consideradas benesses, que dependem de boa vontade para que sejam implementadas, constituem um feixe de direitos juridicamente exigíveis em todos os seus desdobramentos, conforme perspectiva que vem sendo também fortalecida pelos pactos de compromisso, adotados com base nos critérios indicados pela ESG, como norte para a governança corporativa.

Um século depois, os desafios que justificaram o nascimento da OIT, em 1919, renascem para demonstrar que a interlocução entre trabalho decente, cidadania e sustentabilidade deve operar em constante sinergia, para garantir a própria sobrevivência da sociedade contemporânea.

Pandemia, 1

TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI: Vulnerabilidade laboral sob efeito da pandemia/doutrina, 1

Vulnerabilidade laboral sob efeito da pandemia/doutrina, 1

FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: Efeitos da pandemia: o aumento da vulnerabilidade dos trabalhadores e a configuração do conceito jurídico de responsabilidade estrutural. Title: Effects of the pandemic: the increased vulnerability of workers and the configuration of the legal concept of structural responsibility. Autora: Tereza Aparecida Asta Gemignani. Desembargadora do TRT 15. Doutora em Direito do Trabalho pela USP e titular da Cadeira 70 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Professora universitária. Docente e conteudista dos cursos da ENAMAT. Resumo: O isolamento social da pandemia alterou o modo de viver e trabalhar. Intensificou o teletrabalho e o home office; aumentou as atividades desenvolvidas com a utilização de plataformas; colocou em xeque normas de proteção até então aceitas e revelou a necessidade de superar as novas vulnerabilidades. A precarização das condições de saúde e segurança desloca o trabalho decente para um horizonte distante. A redução do valor pago pelos serviços, pretensamente justificada pela crise econômica pandêmica, compromete a capacidade do trabalhador de manter sua subsistência, ampliando a exclusão. Por isso, o resgate dos valores que formataram o direito do trabalho desde os seus primórdios se revela imprescindível para reconstruir novos parâmetros de proteção. Palavras-chave: EFEITOS DA PANDEMIA; EXTERNALIDADE NEGATIVA; AUMENTO DA VULNERABILIDADE DOS TRABALHADORES; RESSIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE. ESG; RESPONSABILIDADE ESTRUTURAL TRABALHISTA. Abstract: The pandemic’s social isolation changed the way of living and working. Intensified teleworking and home office; increased activities carried out using platforms; it called into question the protection standards accepted until then and revealed the need to overcome the new vulnerabilities. The precariousness of health and safety conditions shifts decent work to a distant horizon. The reduction in the amount paid for services, allegedly justified by the pandemic economic crisis, compromises the worker’s ability to maintain their livelihood, increasing exclusion. Therefore, the recovery of the values that shaped labor law since its inception is essential to rebuild new protection parameters. Keywords: PANDEMIC EFFECTS; NEGATIVE EXTERNALITY; INCREASED VULNERABILITY OF WORKERS; RESIGNIFICATION OF THE LEGAL CONCEPT OF THE RESPONSIBILITY; ESG; STRUCTURAL LABOR RESPONSIBILITY. Data de recebimento: 31.08.2021. Data de aprovação: 01.10.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 6 – #673 – dez21/jan22, págs … . Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BRASIL. Universidade de São Paulo. Biblioteca virtual de direitos humanos. Disponível em: www.direitoshumanos.usp.br/index.php. Acesso em: 27 ago. 2021.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26. ed., Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

SILVA, Joana; SOUSA, Liliana D.; PACKARD, Truman G.; ROBERTSON, Raymond. Employment in Crisis: The Path to Better Jobs in a Post-COVID-19 Latin America. World Bank Latin American and Caribbean Studies. Washington, DC: World Bank. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/2bkj8dn9 Acesso em: 27 ago. 2021.

1 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26. ed., Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p.183 2 SILVA, Joana; SOUSA, Liliana D.; PACKARD, Truman G.; ROBERTSON, Raymond. Employment in Crisis: The Path to Better Jobs in a Post-COVID-19 Latin America. World Bank Latin American and Caribbean Studies. Washington, DC: World Bank. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/2bkj8dn9 Acesso em: 27 ago. 2021. 3 ESG é uma sigla em inglês que significa environmental, social and governance, e corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização. O termo foi cunhado em 2004, em uma publicação do Pacto Global em parceria com o Banco Mundial, chamada Who Cares Wins. 4 Disponível em: www.unglobalcompact.org. Acesso em: 29 ago. 2021. 5 O conceito de trabalho decente, formulado pela OIT, em 1999, sintetiza o objetivo de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. Disponível em: www.ilo.org>temas. Acesso em: 27 ago. 2021. 6 Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou tese para fins de repercussão geral (Tema 932), ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 828040 – Rel. Ministro Alexandre de Moraes. 7 BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 148.

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