Testamento vital e o direito à morte digna

A eutanásia, embora considerada crime contra a vida, constitui um desafio para a sensibilidade e a competência de juristas, médicos e legisladores. -- Por Samantha Dufner e Joana Cristina da Silva -- (Bonijuris #675 Abr/ Maio 2022)

Samantha Khoury Crepaldi Dufner PROFESSORA, MESTRE EM DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Joana Cristina Aguiar da Silva ADVOGADA

O direito à vida, ainda que fundamental, pode ser relativizado por meio de autonomia da vontade manifesta, desde que não invada proibição da lei

A vida como direito fundamental não absoluto pode sofrer flexibilizações quando distanciada de seu aspecto sacramental e ligada ao conceito de qualidade. Isso porque, com o avanço tecnológico, muitos recursos e medicamentos são oferecidos no tratamento da doença, postergando, indefinidamente, o momento da morte. Por vezes, tal ideia pode vir associada à obstinação terapêutica (distanásia), praxe não recomendada pelo Código de Ética Médica (cem). De fato, o direito à vida é atrelado ao princípio da dignidade para proporcionar, à pessoa, vida com qualidade.

Primordialmente, abordaremos o direito de morrer com dignidade como direito subjetivo da pessoa no último estágio de vida digna. A morte será analisada por várias vertentes. Nas práticas proibidas, discorreremos a respeito da eutanásia ativa, vista como homicídio privilegiado, praticado sob forte emoção e para ajudar a vítima, e também sobre o suicídio assistido, criminalizado no art. 122 do Código Penal – o qual impede qualquer auxílio –, e à luz do direito comparado, pois é necessária a reflexão crítica sobre a temática.

Na sequência, veremos a boa morte pela eutanásia passiva ou ortotanásia, autorizada no art. 15 do Código Civil e em resoluções do Conselho Federal de Medicina (cfm) e normas do Código de Ética Médica (Resolução 2.217/18 do cfm), traçada como direito da personalidade do agente capaz e lúcido, que, a todo momento de vida, formulará contornos e proibições de tratamentos, procedimentos e medicamentos para eventual ocasião de inconsciência. O testamento vital é o instrumento de garantia do exercício de autonomia da vontade antes da morte, e como negócio jurídico unilateral será analisado quanto à forma, ao conteúdo e aos efeitos, considerando a lacuna da lei e as normas deontológicas, sem esquecer a figura do médico.

Como objeto central do trabalho, encontram-se os bens da personalidade, vida e saúde, assim como o direito à morte, fundados na dignidade humana, e, em contraponto, o aparente conflito e a harmonização desses direitos à livre manifestação de vontade do paciente que optar pela ortotanásia humanizada, via testamento vital ou outras diretivas antecipadas. Como elementos dessa problemática, constam a ética médica, o juramento de salvar vidas e a observância pelo médico do instrumento da vontade do paciente, tudo com o fim de propor soluções de compatibilidade entre as obrigações e direitos envolvidos.

1. O DIREITO DE MORRER COM DIGNIDADE

A morte é procrastinada no pensamento coletivo, e tal ideia não conduz à imortalidade. O ser humano almeja uma vida de qualidade, buscando os caminhos da própria felicidade, conceito alinhado ao de vida digna. A dignidade da pessoa implica haver gozo de bens materiais e imateriais que lhe garantam o mínimo existencial – em uma acepção máxima de bens que possa usufruir – de acordo com o art. 1º, iii, da cf/88. De conteúdo polissêmico, a dignidade é exteriorizada individualmente, e sem padrões no cotidiano, vista na autodeterminação, nas liberdades, nos valores morais e espirituais próprios da essência de cada ser.

No imperativo categórico kantiano, a dignidade equivale a afirmar que “toda pessoa é um fim em si mesma” (Kant, 2004, p. 68). Nesse sentido, todo o ordenamento jurídico deve voltar-se à pessoa como centro e destinatário da norma, e sua dignidade compõe o centro axiológico. Em sendo a vida direito fundamental protegido desde a concepção (art. 5º, cf c/c art. 2º, cc), amparados também estão os direitos correlatos, como saúde (art. 6º, cf).

De outro lado, são processos inevitáveis, o envelhecimento e a finitude, às vezes permeados por doenças terminais e dores no momento do passamento, situação agravada em pacientes terminais. A problemática que apresentamos repousa em um aparente conflito de interesses entre a ideia de sacralidade da vida, a ser defendida sem flexibilizações, e a ideia de vida com qualidade (vida digna).

Segundo Leocir Pessini (1990, p. 76):

O conceito qualidade de vida é interpretado signifi cando que o valor da vida humana é determinado em parte pela habilidade da pessoa realizar certos objetivos na vida. Quando estas habilidades não mais existem, a obrigação de prolongar a vida ou continuar o tratamento não mais existe. Dentro desta chave de leitura, o ser humano, como ser vivo, é uma história pessoal cujo sentido é ele próprio quem dá.

Ao considerarmos que a ideia sacramental deve distanciar-se do direito, o qual, por sua vez, ocupa-se da vida com dignidade como centro gravitacional da hermenêutica jurídica (art. 1º, iii, cf), temos que o plano de autonomia da vida privada conduzirá os limites no ato de morrer, pincelados por variantes, crenças e decisões para o exercício de morrer dignamente.

Em outras palavras, o ato de morrer deve ser compreendido como último estágio da vida digna.

Maria Helena Diniz (2017, p. 510-511) leciona:

Como o paradigma válido para toda a ciência é o de que o conhecimento deve estar sempre a serviço da humanidade, respeitando-se a dignidade do ser humano, colocando-se em xeque a questão do direito a uma morte digna, ante a possibilidade de situações em que ele pode ser ameaçado. Urge que se faça uma reflexão profunda sobre a compreensão destes problemas tão difíceis, delicados e polêmicos por envolverem aspectos éticos-jurídicos, à luz do princípio geral primum non nocere, que inspira a beneficência, isto é, a não maleficência. […] A norma jurídica não pode desrespeitar a dignidade da pessoa humana. Além disso, qualquer decisão tomada deve considerar toda a humanidade e, qualquer que seja ela, envolverá sempre um risco, por ser este uma mera consequência da onisciência humana.

Bernard Lown (1997, p. 27) descreve que “a realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do ato de morrer.”

Ronald Dworkin (2003, p. 253) menciona projeto de lei rejeitado pelos californianos em 1992: “O direito de optar pela eliminação da dor e do sofrimento e de morrer com dignidade no tempo e no lugar de nossa própria escolha, quando nos tornamos doentes terminais, é uma parte integral de nosso direito a controlar nosso próprio destino.” Para o autor citado (2003, p. 280), “é uma obviedade afirmar que vivemos nossa vida à sombra da morte; também é verdade que morremos à sombra de toda nossa vida”. Quão importante é efetivar o direito à morte à luz das crenças pessoais, inclusive religiosas, e das decisões sobre os limites do aparato médico que violarão o corpo do indivíduo, tudo como expressão dos direitos da personalidade do sujeito.

Isso equivale a afirmar que a autonomia de vontade da pessoa que não invada proibição da lei há de prevalecer sobre as opções terapêuticas e a obstinação de prolongar a vida a todo custo, o que se harmoniza aos preceitos deontológicos médicos e à qualidade de vida digna.

A forma de manifestação dessa vontade se faz pelas diretivas antecipadas de vontade (gênero), das quais o testamento vital é espécie. O testamento vital, lavrado em tabelião de notas (preferencialmente), trará os comandos de vontade da pessoa para o momento de seu passamento, traçando a ortotanásia ou eutanásia passiva – uma forma de morte humanizada, permeada por cuidados paliativos ministrados por equipe multidisciplinar e familiares, procedimento autorizado pelo Código Civil.

Esse instrumento pode ser elaborado em qualquer momento de vida e assinala para a observância da morte natural – jamais provocada – com descrição da ressuscitação e procedimentos a serem negados em caso de futura inconsciência, sendo curial ponderar sobre seu objeto e conteúdo, pois cláusulas que contrariem o Código de Ética Médica são, em princípio, afastadas pela lei.

2. PRÁTICAS PROIBIDAS NO TESTAMENTO VITAL: EUTANÁSIA ATIVA E SUICÍDIO ASSISTIDO

Certas maneiras de morrer são proibidas no ordenamento jurídico pátrio. A eutanásia significa, etimologicamente, morte boa, morte apropriada, morte piedosa ou morte sem grandes sofrimentos. Esse termo teve origem na Grécia, apresentado por Francis Bacon em 1623, que o definiu como “um tratamento adequado às doenças incuráveis” (Martins, 2010).

Segundo Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 659), a eutanásia é “homicídio piedoso (chamado, também, homicídio médico, compassivo ou consensual), para abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente, reconhecidamente incurável, que se encontra profundamente angustiado”. É, portanto, forma de homicídio privilegiado.

Logo, eutanásia ativa consiste no ato de provocar a morte de outrem por razões piedosas e para aliviar o sofrimento, sendo sujeito ativo da conduta o familiar, o amigo, o médico, o enfermeiro ou estranho, praticado de forma livre por medicamentos, injeção letal, desligamento de aparelhos, e outros. O art. 41, caput, do cem proíbe “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.

Ronald Dworkin (2003, p. 264) traz a seguinte reflexão:

Em geral, os parentes de um paciente em estado vegetativo tratam-no como se ainda estivesse vivo: visitam-no, quase sempre diariamente, e às vezes falam com ele, que na verdade nada ouve do que dizem. Às vezes, porém, quando estão convencidos de que a recuperação é impossível, pedem que as sondas que o alimentam e hidratam sejam retiradas, bem como outras formas de suporte vital, mesmo que o paciente não tenha assinado um testamento de vida.

O estado vegetativo da pessoa angustia os familiares, em uma mistura de afetividade, consideração e deveres, e essas pessoas podem atravessar anos na custosa e infrutífera jornada. Nessa hipótese, ainda que a família esteja convencida da ineficiência dos aparelhos e irreversibilidade do quadro, nada poderá ser realizado por conta da criminalização do procedimento.

A questão é demasiadamente complexa, pois a eutanásia ativa e seus reflexos geram debate mais amplo, ad argumentandum, em que não somente o doente terminal pode encontrar-se em estado vegetativo, mas também outras pessoas que perdem a qualidade de vida pelo agravamento da doença. Em eventual legalização desse procedimento, igualmente assistiria a elas o direito de morrer? Christian de Paul de Barchifontaine e Leo Pessini (2010, p. 393) ponderam que “aceitar a eutanásia num caso individual é uma coisa, aceitá-la como política pública é algo bem diferente. Com frequência argumenta-se que propostas para legalizar a eutanásia nunca podem conter garantias absolutas”.

Outra prática proibida no ordenamento é o suicídio assistido ou morte assistida, que consiste no auxílio de uma pessoa a outra para que pratique pessoalmente o ato que leva à sua morte. A autoria é daquele que põe termo à própria vida, e é nesse ponto que o suicídio assistido se diferencia da eutanásia ativa.

Um caso tratado como eutanásia – em nossa visão, uma hipótese de suicídio assistido – causou repercussão na Espanha. Ramon Sampedro foi prova de que o direito de morrer deve ser aceito como maneira de atender à vontade e ao último ato de vida digna. Ramon era quadriplégico desde os 25 anos (1969), em decorrência de um mergulho no mar da costa da Galícia, e durante 29 anos como deficiente ansiava por encerrar sua vida. O problema é que não podia praticar suicídio, carecendo da ajuda de terceiro, fato pleiteado e negado repetidas vezes pelo Judiciário espanhol. No dia da sua morte, em 12 de janeiro de 1998, Ramon usou um canudo para engolir cianureto após obter ajuda material de vários amigos.

Demonstrando preocupação com a responsabilidade criminal daqueles, repartiu o auxílio em várias ações e pessoas (comprar o cianureto, calcular a dose, transportar, preparar a bebida, colocar no copo, posicionar o canudo, levar o canudo até a boca, receber a carta de despedida), e preparou um vídeo do ato de morrer. A amiga Ramona Moneiro foi processada, porém, por falta de provas, absolvida. O caso impulsionou intenso debate sobre a eutanásia na Espanha (Guerra, 1999, p. 426- 432).

De modo geral, a sociedade ainda é avessa a tais discussões. No Brasil, as duas formas relatadas são delituosas. Pela prática da eutanásia, o agente será punido na forma de homicídio privilegiado, conforme o art. 121, § 1º, do Código Penal, por motivo de compaixão e forte emoção, sendo irrelevante o pedido da vítima. Já o induzimento, auxílio ou instigação ao suicídio é crime do art. 122 do Código Penal.

Questiona-se: a criminalização do suicídio assistido em toda e qualquer hipótese, considera o direito de morrer com dignidade daquele que se encontra impedido ou sem condições de praticar a conduta isoladamente? Na Suíça e em Luxemburgo (Loi du 16 mars 2009 sur léuthanasie et lássistance au suicide – moderna lei), o suicídio assistido é prática institucionalizada pela injeção de única dosagem letal, e na Holanda é autorizado por auxílio (art. 294 do Código Penal holandês), onde já foi regulamentada a eutanásia, por lei, desde 2002. Na Austrália, a lei que autorizava a praxe foi revogada em 1998. Atualmente, nos Estados Unidos, vários estados incorporam a eutanásia em seus códigos (Diniz, 2017, p. 511-521.).

Em contraponto a tais institutos, e propondo nova forma de cuidar da morte, Luis Kutner (2015, p. 107), ciente que a legislação norte-americana não permitia a eutanásia e o suicídio assistido, porém, considerando a permissão ao doente incurável e irreversível, para morrer de acordo com sua vontade, alegou que “seguir os quereres do paciente segundo o quadro clínico, no que diz respeito à sua recusa em realizar tratamentos”, afasta o enquadramento da eutanásia, já que essa renúncia não diz respeito aos meios ordinários de preservar a vida. Essa é a ortotanásia, que pode licitamente ser o objeto das diretivas antecipadas de vontade do paciente.

3. A ORTOTANÁSIA COMO OBJETO DO TESTAMENTO VITAL

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 184), ainda que desde a antiguidade ocorressem apreensões relacionadas aos direitos humanos, reforçadas com o surgimento do cristianismo, a constatação dos direitos da personalidade como esfera do direito subjetivo é um tanto quanto nova, como consequência da Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, das Nações Unidas, em 1948, e também da Convenção Europeia em 1950.

Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017, p. 198), “conceituam-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”.

O Código Civil de 2002, na óptica da repersonalização, cuidou de regulamentar os direitos extrapatrimoniais nos arts. 11 a 21. Prescreveu um direito da personalidade que consiste na autonomia de vontade para proibir todo tipo de constrangimento, e permite negar tratamentos e cirurgias com risco de vida, legalizando a boa morte, ortotanásia ou eutanásia passiva: “Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

A norma impõe aos médicos, enfermeiros, profissionais de saúde e familiares, não agir contra a vontade do paciente, que é livre para rejeitar cirurgias ou tratamentos de saúde que estimar arriscados ou inócuos com o propósito de preservar a inviolabilidade do corpo humano. Para permitir o correto exercício desse direito, faz-se imprescindível o prévio consentimento informado adequado, claro, simples e preciso, que consiste em informações minuciosas e compreensíveis, prestadas pelo médico ao paciente sobre seu estado de saúde, os tratamentos indicados, os riscos e efeitos colaterais da escolha, especialmente o risco da morte.

De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 659), o conceito de ortotanásia se caracteriza como “homicídio piedoso omissivo (eutanásia omissiva, eutanásia moral ou terapêutica), deixando o médico de ministrar remédios que prolonguem artificialmente a vida da vítima, portadora de enfermidade incurável, em estado terminal e irremediável, já desenganada pela medicina”. Discordamos, frontalmente, dessa posição, porque ao deixar de ministrar medicamentos que prolonguem a vida, o paciente morrerá pelo avanço natural da doença e condições orgânicas naturais, o que repele qualquer designação de homicídio.

De outra face, concordamos com Luciana Dadalto (2015, p. 52), ao afiançar que a “ortotanásia é interrupção de tratamento fútil”, incomum e desproporcional perante a eminente morte do paciente; “morte que não se procura, nem se provoca”, mas não se prolonga excessivamente, para atender a uma morte digna e humana.

A ortotanásia é autorizada em outras fontes normativas, o que traz tranquilidade ao médico, hospital e enfermeiros que acatarão a vontade do paciente.

Diz o Enunciado 528, aprovado pelo Conselho da Justiça Federal, na V Jornada de Direito Civil, que “é válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar sua vontade”.

A Resolução 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina, em seu art. 1º, caput, recomenda ao médico como norma de conduta ética, a suspensão de procedimentos que estendam a vida do paciente em fase terminal: “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.”

Com lastro no aprofundamento de conceitos, a resolução permite a ortotanásia e não fomenta a distanásia. Na obra Direito Médico, Genival Veloso de França (2017, p. 552) fixa as essenciais diferenças entre eutanásia, ortotanásia e distanásia:

A primeira seria uma conduta para promover a morte mais cedo do que se espera, por motivo de compaixão, ante um paciente incurável e em sofrimento insuportável. A ortotanásia, como a suspensão de meios medicamentosos ou artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e considerado em “morte encefálica”, quando há grave comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação. E, finalmente distanásia, como o tratamento inexistente, desnecessário e prolongado de um paciente terminal, que não apenas é insalvável, como também submetido a tratamento fútil.

O art. 41 do cem proíbe a eutanásia e, no parágrafo único, recomenda a aceitação da vontade emanada pelo paciente e a adoção de cuidados paliativos, conforme trataremos adiante.

Em sede de análise de caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (tjrs), em 20 de novembro de 2013, na Apelação Cível 70054988266, decidiu pela vontade expressa da pessoa de não se submeter à amputação de um de seus membros, através da ortotanásia declarada em testamento vital:

Apelação cível. Assistência à saúde. Biodireito. Ortotanásia. Testamento vital.

 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida.

 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural.

 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 1º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal.

 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.

5. Apelação desprovida. (Apelação Cível 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel. Irineu Mariani, j. 20.11.2013). (Rio Grande do Sul, 2013. TJ-RS – AC: 70054988266 RS, Rel. Irineu Mariani, DJ 20.11.2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27.11.2013).

A lucidez da fundamentação assenta-se, precisamente, em: a) respeito à autonomia de vontade do paciente capaz; b) ortotanásia prescrita no art. 15 do Código Civil, assegurando o direito do paciente de não ser constrangido à mutilação pelos médicos; c) direito de morrer pelo avanço natural do quadro clínico, a seu tempo, e com dignidade; d) respaldo do médico e hospital para atender à vontade via testamento vital.

Segundo Luciana Dadalto (2012):

Trata-se do primeiro acórdão que, diante de um caso concreto, analisou o testamento vital” e Resolução n. 1995/2012 do CFM […] tal decisão baseou-se na manifestação de vontade do paciente, entendida pelos desembargadores como testamento vital, a qual, segundo os mesmos, figura na Resolução n. 1995/2012 do CFM.

3.1. A morte humanizada via cuidados paliativos

Ortotanásia é conhecida como morte humanizada. Fato é que tanto paciente quanto familiares devem ser preparados e acolhidos para o passamento. Os cuidados paliativos “se apresentam como alternativa médica para aqueles que não vislumbram a morte como uma possibilidade de seu projeto autobiográfico” e repousam na ideia de um manto protetor que permite à pessoa a construção de sua pessoalidade (Sá; Moureira, 2017, p. 139).

A OSM definiu cuidados paliativos como “o cuidado ativo e total dos pacientes cuja enfermidade não responde mais aos tratamentos curativos. Controle da dor e de outros sintomas, entre outros problemas sociais e espirituais são da maior importância” (Maccoughlan, 2004, p. 169). Ao conceito de saúde da OSM acrescentemos compaixão, honestidade e uma eficiente equipe multidisciplinar.

A Associação Portuguesa de Bioética confeccionou a Carta dos Direitos do Utente dos Serviços de Saúde, na qual recomenda cuidados paliativos não exclusivamente na ortotanásia:

Artigo 27.º O Utente tem direito a receber os cuidados apropriados ao seu estado de saúde, no âmbito dos cuidados preventivos, curativos, de reabilitação e paliativos.

[…]

Artigo 30.º O Utente tem o direito à autodeterminação em matéria de cuidados de saúde.

Artigo 31.º O Utente tem direito a ser informado sobre a sua situação de saúde, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado.

O Código de Ética Médica brasileiro traz no capítulo i, dos princípios fundamentais, inciso xxii, que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. No art. 36, § 2º, consta que o médico não abandonará o paciente incurável e terminal, salvo justo motivo, e deverá assisti-lo para empreender os cuidados paliativos.

Em dimensões antropológica e filosófica da pessoa, para considerar esferas múltiplas e complexas do ser, física, emocional, intelectual, moral e espiritual, entendemos que dar concretude ao conceito de saúde da OSM importa em enxergar o paciente nessa profundidade. Cuidar alcança a ideia de morrer de forma salutar, com cuidados paliativos dispensados ao paciente terminal para tratar seu sofrimento nas várias dimensões. A sinergia desses cuidados deve ser dispendida por médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, padres, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros:

No Brasil estamos ainda numa fase muito rudimentar quando falamos de cuidado digno da dor e do sofrimento humano no sistema de saúde. Há muito a fazer em termos de operacionalização de políticas públicas relacionadas com a questão, bem como a necessidade de intervir no aparelho formador de profissionais para criar uma nova cultura. […] Para além da difícil resposta à questão do “porquê” da dor/ sofrimento – campo das filosofias e religiões –, o cuidado solidário, que alia competência técnico científica e humana, em meio à dor e ao sofrimento do outro, é uma chance preciosa para nos deixarmos tocar em nossa sensibilidade e nos humanizarmos nesse processo (Pessini; Bertachini, 2004, p. 11).

Em outros dizeres, a morte humanizada se faz pelo alívio da dor do corpo e do espírito, do desconforto da doença, através do olhar generoso da amorosidade, sabedoria, compreensão e gratidão, para evitar o abandono, preconceito, e indiferença, oferecendo o diálogo com escuta e entendimento, e proporcionar ao humano cuidado em sua inteireza e complexidade.

4. ANÁLISE DO TESTAMENTO VITAL

O registro antecipado da vontade é imprescindível e deve ser efetivado por instrumento fidedigno chamado testamento vital, ainda que não regulamentado no Brasil. Ernesto Lippmann (2013, p. 17) explica que esse instrumento não pode ser confundido com o testamento civil – relacionado ao patrimônio que o de cujus deixou em vida para seus herdeiros. O testamento vital conduz os desejos da pessoa para o caso de ocorrência grave e inconsciente de saúde como diretiva de sua vontade.

Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2001, p. 295-296) define o testamento vital:

O testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade. Visa-se, com o testamento vital, a influir sobre os médicos no sentido de uma determinada forma de tratamento ou, simplesmente, no sentido do não tratamento, como uma vontade do paciente que pode vir a estar incapacitado de manifestar sua vontade em razão da doença.

Na teoria geral do direito civil, trata-se de negócio jurídico não solene, unilateral, gratuito, de essência revogável, sem a necessidade de testemunhas e formalidades impostas em um testamento civil, mesmo assim, para segurança jurídica, recomendamos seja lavrado por escritura pública em cartório de notas, com objeto da especificação do desejo ou não de prolongar a vida através de tratamentos e procedimento médico, inclusive ressuscitação. Esse testamento clareará as condutas a serem adotadas pela equipe médica quando a pessoa estiver inconsciente, ou não se encontrar apta à tomada de decisões, respeitando, sempre, sua vontade.

Os pressupostos básicos, a nosso sentir, são: a) pleno gozo das capacidades mentais; b) ser maior de 18 anos (existem casos em que os menores de idade podem realizar o testamento vital, com prévia autorização judicial), independentemente de seu estado de saúde; c) declaração espontânea dos tratamentos, cirurgias e ressuscitação que não deseja em caso de inconsciência; d) manifestação, preferencialmente, por instrumento público.

Para Tânia da Silva Pereira, Rachel Aisengart Menezes e Heloísa Helena Barboza (2010, p. 62), o testamento vital possibilita

conferir eficácia futura à vontade da pessoa instrumentalizada previamente, pois ninguém melhor do que ela para decidir acerca de aspectos da sua personalidade, inclusive sobre o próprio corpo. Vivemos num mundo plural e multicultural, onde cada um pode elaborar um projeto de vida que melhor condiga com os próprios valores, crenças e anseios, modo este com que pauta sua vida e pretende conduzi-la até a morte.

Genival Veloso de França (2016, p. 446-447) alerta que o conteúdo do testamento vital não pode ter como objetivo institucionalizar a eutanásia ativa nem abreviar a morte, mas sim trazer o direito fundamental de dizer quais tratamentos médicos não serão adotados ou praticados para o momento crítico de impossibilidade de dizer sua vontade.

Sem regulamentação específica na lei brasileira, utilizamos o art. 15 do Código Civil de 2002; os arts. 22, 23 e 24 do atual Código de Ética Médica; e as resoluções 1.805/06 e 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina, as quais, mesmo sem força de lei, e de cunho deontológico, prescrevem sobre as diretivas antecipadas de vontade. A Resolução 1.995/12 dispõe:

Art. 1º Defi nir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.

§1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.

§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.

§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.

§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.

Algumas ponderações teceremos para respaldo da categoria médica.

O testamento vital só pode conter cláusulas que não contrariem a lei e o cem (proibidos eutanásia ativa, suicídio assistido e abreviação da morte). Como resultado, prevalecerá a vontade do paciente sobre a vontade do médico e dos familiares, tudo conforme esboçado no testamento vital válido, especialmente, para quando o paciente estiver inconsciente ou impossibilitado de se manifestar.

Ademais, é firme e valiosa a possibilidade de nomear procurador para tal fi m, o que deve ser considerado válido pelo médico, caso exista procuração com poderes especiais e fundada na recomendação indicada.

O testamento vital não é solene, admite a forma verbal e deverá ser reduzida por escrito no prontuário médico (e observada pela equipe), sendo válida tal diretriz e eficaz para todos os fins. Na ausência de testamento vital, é dever do médico recorrer aos familiares, comitês e conselhos.

Conforme aduzimos sobre a forma do negócio jurídico, para a segurança jurídica do paciente, deverá lavrar pela via da escritura pública, pois, sendo ato negocial sujeito à condição futura, e em caso de inconsciência, a solenidade fornecerá solidez pela fé pública. Para o médico, recomendamos acatar a vontade do paciente pela forma presencial e verbal, a ser reduzida pelo profissional no prontuário médico – já que a resolução a admite – e quando não proferida de viva voz pelo paciente, exija o testamento por escrito, confeccionado por forma segura.

A importante ferramenta chamada Registro Nacional do Testamento Vital (rentev)1 tem como objetivo registrar, organizar e conservar atualizadas as informações e documentações relacionadas às diretrizes antecipadas de vontade e também às procurações de cuidados de saúde. Esse sistema possibilita o levantamento, a preservação e a administração do acesso aos testamentos vitais das pessoas que visam a outorgar um documento de diretivas antecipadas de vontade (dav)2. Tal sistema funciona suportando uma base de dados de esfera nacional, na qual são mantidos centralizados e atualizados os testamentos vitais que ali foram colocados, assegurando aos cidadãos a sua consulta, assim como aos médicos responsáveis pelos cuidados de saúde.

O testamento vital em países como Espanha, Portugal, Alemanha, Argentina, Uruguai e Estados Unidos (neste último, conhecido como living will), é regulamentado pelo ordenamento, e no Japão, onde é comum a prática de redigir escritura pública de testamento vital, é feito entre pais e filhos, bem como entre marido e mulher (Lippmann, 2013, p. 27). Nessas situações, todos os tratamentos médicos serão realizados de acordo com a vontade do paciente.

Luciana Dadalto (2015, p. 106), destaca que “a expressão living will foi cunhada nos EUA no final da década de 1960 […] o primeiro modelo de living will e as premissas deste documento foram cunhados por Luis Kutner3, em 1969, cujo cerne mostra o consentimento livre e esclarecido”. Nele, o paciente escreveria sua rejeição a tratamentos quando o seu estado vegetativo ou fase terminal fosse confirmada. Há quem indique a aplicação desse instrumento aos fiéis da religião Testemunhas de Jeová para rejeitar as transfusões sanguíneas (praxe adotada no Brasil para optar pela bolsa de plasma em lugar da transfusão por razões religiosas).

Portanto, pela via do testamento vital, a pessoa assegura o futuro exercício de vontade para a morte digna, humanizada, a boa morte.

5. QUESTÕES DA BIOÉTICA NAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

No entender de Genival França (2016, p. 532), a medicina mergulhou durante certo período hipocrático nos rigores e tradições dos valores religiosos: “a ética do médico sempre foi inspirada na teoria das virtudes, base de todo corpo hipocrático, realçado de forma bem especial no Juramento. A prudência era a virtude mais exaltada.”

No século 15, surgiu o conceito de deontologia médica voltada para o social e coletivo, sem desligar-se do conceito hipocrático. Apenas no século 20, o conceito entrou em crise, especialmente quando aumentaram os processos judiciais contra médicos e hospitais (França, 2016, p. 532).

Na contemporaneidade, a medicina segue princípios do Código de Ética Médica, em constante evolução e avanço biotecnológico. Novas questões morais e éticas desafiadoras assumem dimensões políticas, morais, sociais e econômicas bem distintas daquelas de antigamente, e os movimentos sociais tiveram influência na mudança, com posições em favor do aborto, eutanásia e reprodução assistida.

O art. 22 do cem4 prescreve que é vedado ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte”.

Em resposta ao problema posto, a conduta profissional – afinada à lei e deontologia – deve ser harmonizada no seguinte sentido: em iminente risco de morte deverá o médico salvar a vida do paciente, exceto em caso de tal paciente ter declarado uma diretiva antecipada de vontade para não se submeter a determinado tratamento quando inconsciente, pois, nessa hipótese, o médico deverá respeitar a autonomia de vontade manifestada.

Se o paciente estiver consciente, compete ao médico proceder ao consentimento informado extravasado no dever de informação, ínsito na relação consumerista, e recomendamos para respaldo de ambas as partes, dê-se sempre por escrito e na presença de duas testemunhas, que assinarão o instrumento particular. A informação deve ser clara, acessível ao interlocutor e seu grau de instrução, detalhada, e devem constar dados sobre a doença, procedimentos indicados no tratamento, riscos, efeitos colaterais, e em contrapartida e no mesmo instrumento, dar-se-á a livre vontade do paciente a ser exarada de próprio punho com a ciência dos riscos, e pela opção da ortotanásia, quando for o caso.

No que tange à liberdade do paciente, é vedado ao médico consoante art. 24 do cem “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”. Em suma, o médico deverá respeitar a autonomia da vontade do paciente, e abster-se da obstinação terapêutica.

Em países como Espanha, Itália e Portugal, os códigos de ética médica trazem em seus dispositivos artigos que regulam as diretrizes antecipadas de vontade. Esses códigos regularam, de forma simples e objetiva, o dever do médico de honrar essas diretrizes, até mesmo as verbais.

Com o progresso cada vez mais significativo dos direitos humanos, a conduta do médico pede a permissão do paciente ou de seus representantes legais, visando a atender ao princípio da autonomia ou da liberdade, através do qual toda pessoa pode ser responsável pelo seu próprio destino e escolher qual sentido quer dar à sua vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É justo que a vida tenha um conteúdo jusfundamental de enorme relevância, e que o Estado tenha interesse e dever em sua proteção; de outro lado, é necessário ponderar que a dignidade da pessoa foi alicerçada como regra-matriz de incidência do ordenamento jurídico, vetor interpretativo, supraprincípio constitucional. Se nenhum direito fundamental é absoluto, e se nenhuma regra de hermenêutica assinala para a leitura isolada da norma no sistema, a harmonização entre o direito à vida e à dignidade intrínseca do ser humano é a melhor resposta jurídica.

Em sendo a dignidade polissêmica e individual, e admitindo-se que possa ser exteriorizada de incontáveis maneiras, conduzindo o discurso para a égide do princípio da legalidade, é cediço que a pessoa só não pode fazer o que é proibido por lei, sendo a autonomia de vontade o guia de suas liberdades e decisões.

Nesse sentido, é lícito à pessoa impor limites à extensão da sua vida. Tal concepção nos conduziria, com acerto, à reflexão social sobre os institutos do suicídio assistido e da eutanásia ativa, considerados crimes no Brasil, mas, nos parece propícia a ampliação do debate desses institutos.

Entretanto, no que tange ao direito de morrer e ao limite das intervenções de terceiros no corpo da pessoa, nosso ordenamento civil declara, expressamente, que há campo para a autonomia de vontade (art. 15, cc/02) pelo recurso da ortotanásia humanizada.

Tanto Estado quanto sociedade, destacando-se nesta a comunidade médica, estão adstritos à exteriorização de vontade livre e espontânea da pessoa lúcida e capaz no que concerne à negativa dos procedimentos cirúrgicos, ressuscitação, tratamentos e medicamentos que importem ou não em risco de vida. No campo dessa licitude, e para garantia do cumprimento dessa determinação, a pessoa doente ou não, em fase terminal ou não, deve registrar por documento fidedigno as diretrizes antecipadas da sua vontade para futuro incerto, no qual possa faltar a lucidez e consciência plenas.

As diretivas podem ser externadas verbalmente e anotadas em prontuário médico, ou por procurador especialmente constituído para esse fim e, também, por testamento vital, preferencialmente, realizado em cartório de notas e registrado no rentev.

O corpo é asilo inviolável da pessoa – quando não existir a vontade declarada, abre- -se o dever profissional e social de salvar a vida – e, a par da obrigação de salvar vidas e do juramento hipocrático, as orientações deontológicas e o sistema normativo assinalam que o médico cederá à vontade do paciente, pautada no projeto individual de morrer com dignidade, e cercado de cuidados amorosos e competentes para alívio da dor da alma e do corpo, tudo com limite na lei.

Trata-se de limitar o tratamento artificial do paciente, assegurando que a morte ocorra pelo desenvolvimento natural da doença, prevalecendo a decisão do paciente sobre a opinião da família e do médico. A Resolução 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina trouxe resposta para muitas dessas incertezas, e regulamentou, dentro de seu âmbito de atuação, o testamento vital para aplicar a ortotanásia como mecanismo para a boa morte.

A morte pela ortotanásia não é provocada por ninguém, nem pelo paciente; todavia, é resultado de vontade direta e clara de não agir em busca de procedimentos inúteis e paliativos de manutenção da vida. Entre a sacralidade e qualidade, que a vida se oriente pela última.

Em conclusão, o dever fundamental de respeito – cláusula implícita do direito constitucional – dá ao ser humano a garantia de vida digna com estágios guiados pela autodeterminação. Assim, por que não considerar o direito de morrer com dignidade como um estágio fi nal da vida digna e um capítulo da história do ser?

Afinal, toda pessoa merece ser estimada sob o prisma antropológico holístico compatível ao conceito de saúde dado pela OMS, posto que ao tocar uma vida não nos esqueçamos de que ali se encontram corpo, emocional, espiritual, intelectual e moral, e todos, harmoniosamente, inspiram cuidados sob um manto protetor de paz, amorosidade, compreensão e liberdade.

NOTAS

1. O Registro Nacional do Testamento Vital (RENTEV) é um portal criado pela advogada Luciana Dadalto, pioneira no estudo do testamento vital no Brasil, com experiência em Direito Médico e da Saúde, Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG, Mestre em Direito Privado pela PUC Minas, administra o portal: www.testamentovital.com.br. É autora de livros e artigos científicos no Brasil e no exterior.

2. Modelo de Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) do Governo de Portugal. A Lei 25, de 16 de julho de 2012, regulou as diretivas antecipadas de vontade em Portugal, sob a forma de testamento vital e a nomeação de procurador de cuidados de saúde, além de criar o Registro Nacional do Testamento Vital (RENTEV).

3. Luis Kutner (1908-1993) foi um advogado norte-americano, ativista de direitos humanos e cofundador da Anistia Internacional. Ele teve participação em episódios internacionalmente famosos como a libertação de József, cardeal Mindszenty (líder religioso húngaro mantido no cárcere pelo regime comunista de Budapeste) e na luta pelos direitos civis nos anos 1960.

4. Exposição de motivos da Resolução CFM 1.995/12. Disponível em: https://bit.ly/3sjsUiU Acesso em: 21 fev. 2018.

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Sobre o RENTEV, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3HjdNKH Acesso em: 15 mar. 2018.

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Samantha Khoury Crepaldi Dufner.

Mestre em Direitos Humanos Fundamentais. Especialista em Direito Notarial e Registral. Professora de Direito Civil da usf – Universidade São Francisco e de cursos de Pós-Graduação. Advogada, consultora e pesquisadora em Direito Civil, Biodireito, e Direitos Humanos. samanthadufner@ig.com.br

Joana Cristina Aguiar da Silva.

Graduada em Direito pela Universidade São Francisco, campus Bragança Paulista. joana.aguiardasilva@gmail.com

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