Renda básica, cidadania e mínimo existencial

Lei não regulamentada que assegura renda para suprir despesas básicas do cidadão volta a ser discutida. -- Por Eduardo Cambi Promotor do Ministério publico do Paraná -- (Bonijuris #671 Ago/Set 2021)

Eduardo Cambi PROMOTOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ

CONFORME HANNAH ARENDT, A PRIVAÇÃO DA CIDADANIA AFETA A CONDIÇÃO HUMANA E O SER HUMANO, PRIVADO DE SEU ESTATUTO POLÍTICO, PERDE A SUA SUBSTÂNCIA

A Lei 10.835/04 instituiu a renda básica de cidadania como um direito de todos os brasileiros e dos estrangeiros residentes no país há pelo menos cinco anos. O benefício deve ser igual para todos e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando o grau de desenvolvimento da nação e as possibilidades orçamentárias (art. 1º, caput e § 2º).

Todavia, essa lei não foi regulamentada pelo Poder Executivo, o que motivou o ajuizamento do Mandado de Injunção 7.300/DF pela Defensoria Pública da União. O relator, ministro Marco Aurélio, no início de março de 2021, julgou procedente o pedido, ao considerar que “a reserva do possível não pode limitar direitos básicos, entre os quais os aqui versados, nem privar o indivíduo de dignidade considerado o mínimo existencial, sob pena de esvaziar a própria força normativa da Constituição Federal”1.

Votou, pela analogia ao art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 (renda familiar percapita inferior a um quarto do salário mínimo), à luz do art. 7º, inc. IV, da Constituição Federal, e até que sobrevenha regulamentação pelo Executivo, para que a renda básica de cidadania fosse estabelecida em valor correspondente ao salário mínimo, fixando, a teor do art. 8º, inc. II, da Lei 13.300/16, o prazo de um ano para a edição, pelo presidente da república, da norma regulamentadora. Foi acompanhado, no plenário virtual, pelos ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.

No entanto, a maioria dos ministros do STF, seguindo o voto do ministro Gilmar Mendes, concedeu, em parte, o pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para determinar que o governo federal implemente, a partir de 2022, o pagamento do programa de renda básica de cidadania para brasileiros em situação de extrema pobreza e de pobreza, com renda per capita inferior a R$ 89 e R$ 178, respectivamente. Não determinou, porém, o valor do benefício em um salário mínimo, tendo exortado apenas que os poderes Legislativo e Executivo adotem medidas administrativas e legislativas necessárias para atualização dos valores dos benefícios básicos e

variáveis do Programa Bolsa Família (Lei 10.836/04) e aprimorem os programas sociais de transferência de renda, unificando-os, se possível, com a previsão da renda básica da cidadania prevista na Lei 10.835/04.

O STF também afirmou que o Poder Executivo deverá adotar todas as medidas cabíveis para a implementação do benefício, inclusive mediante a alteração do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 20222.

1. RENDA BÁSICA É UMA CONQUISTA DA CIDADANIA?

A resposta a esta pergunta passa pela compreensão do conceito de cidadania. Também gera outra questão: qual é a importância desse tema para os direitos humanos?

Os direitos humanos pressupõem o direito a ter direitos. A cidadania não é apenas um fato ou um meio, mas também um princípio. Isso porque, conforme Hannah Arendt, a privação da cidadania afeta, substancialmente, a condição humana3. O ser humano privado de seu estatuto político perde a sua substância, que é ser tratado pelos outros como semelhante4.

Os direitos humanos se fundamentam no exercício da cidadania por meio de uma dupla distinção ontológica: a igualdade e a diferença5. O discurso e a ação são condições da pluralidade humana, pois, se as pessoas não fossem iguais, não poderiam se entender; e se não fossem diferentes, não precisariam nem da palavra nem da ação para comunicarem-se, já que ruídos seriam suficientes para isso. É a diferença, na esfera privada, e a igualdade, no espaço público, que caracterizam a pluralidade humana.

Nesse aspecto, perder o acesso à esfera pública é estar privado da igualdade, o que torna sem sentido os direitos humanos, uma vez que quando a pessoa não vivencia a sua condição política na comunidade, resta-lhe apenas o âmbito da vida privada. Não é por acaso que os nazistas começaram a perseguição aos judeus pela privação de seu status civitatis, convertendo-os em “inimigos objetivos”6. É na relação entre as pessoas, em razão da pluralidade da vida pública, que os direitos humanos se afirmam.

A ausência do vínculo da cidadania retira, pois, a condição humana de igualdade7. E, quando não se tem igualdade jurídica, a nação se desenvolve em uma massa anárquica de indivíduos super e subprivilegiados. Os direitos se tornam privilégios de determinados grupos hegemônicos, deixando de ser para todos os seres humanos, o que prejudica as pessoas mais vulneráveis, sujeitando-os à própria sorte e obrigando-os a retornar ao estado de natureza.

2. A EXISTÊNCIA É UM DIREITO?

O problema não é novo. Vários documentos jurídicos trataram deste assunto.

O art. 151 da constituição de Weimar previa que “a organização da vida econômica deve corresponder aos princípios fundamentais da justiça com a finalidade de garantir a todos uma existência digna ao homem”.

Foi, todavia, a partir do final da segunda guerra mundial que o tema despertou maior interesse. A constituição italiana de 1947 afirma, no art. 36, que o “trabalhador tem direito a uma retribuição proporcional à quantidade e qualidade do seu trabalho, que seja suficiente para garantir para si e para a sua família uma existência livre e digna” (grifo nosso).

Já o art. 23.3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948, repete essa ideia com outras palavras: “Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social” (grifo nosso).

Na segunda metade do século 20, surgiram disposições como a contida no art. 23 da constituição belga (“Toda pessoa tem direito de conduzir uma vida conforme a dignidade humana”) e no art. 12 da constituição suíça de 1999, que contempla o “direito de ajuda a pessoas necessitadas”, ao prever: “Qualquer pessoa necessitada e que não está em condições de prover a si mesmo tem o direito de ser ajudado e assistido, e de receber os meios indispensáveis para uma existência digna”.

Ademais, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, no art. 34.3 estabelece:

A fim de lutar contra a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais (grifo nosso).

Percebe-se, nesses exemplos, que é possível associar a existência à dignidade, isto é, dar à existência humana um significado jurídico baseado no princípio do respeito integral à pessoa, o que implica ir além da condição natural ou biológica.

Não é possível separar a cidadania, tampouco o direito à vida digna, das necessárias condições materiais de seu exercício. Ser cidadão significa viver com dignidade, o que é muito diferente de apenas sobreviver. O nazismo negou a dignidade ao ser humano quando esvaziou o próprio ser ao privá-lo de seus direitos básicos nos campos de concentração, como explica Fábio Konder Comparato:

Antes de serem instituições penais ou fábricas de cadáveres, o Gulag soviético e o Lager nazista foram gigantescas máquinas de despersonalização de seres humanos. Ao dar entrada num campo de concentração nazista, o prisioneiro não perdia apenas a liberdade e a comunicação com o mundo exterior. Não era, tão só, despojado de todos os seus haveres: as roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele era, sobretudo, esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com substituição altamente simbólica do nome por um número, frequentemente gravado no corpo, como se fora a marca de propriedade de um gado. O prisioneiro já não se

reconhecia como ser humano dotado de razão e sentimentos: todas as suas energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão. E nesse esforço puramente animal, tudo era permitido: o furto da comida dos outros prisioneiros, a delação, a prostituição, a bajulação sórdida, o pisoteamento dos mais fracos.8

Portanto, a existência não tem apenas uma dimensão inata à pessoa, mas também uma dignidade “social”; é resultante e integra as relações entre as pessoas, ou seja, o espaço público, onde a personalidade humana se desenvolve9. O direito à existência digna deixa de ter um reducionismo biológico quando passa a ter como parâmetro a garantia jurídica do mínimo vital.

3. A NATURALIZAÇÃO DA POBREZA

Quando não se asseguram direitos humanos para todas as pessoas, independentemente de qualquer outra condição social, são chancelados privilégios. Alimentação, educação, saúde, transporte, moradia deixam de ser direitos fundamentais quando, na prática, apenas alguns podem exercê-los. A cidadania censitária é a negação dos direitos humanos e o retorno ao estado de natureza.

A marginalização e a opressão das camadas menos favorecidas da sociedade geram insatisfação e um permanente clima de revolta que pode levar à destruição da cultura hegemônica, como explica Sigmund Freud:

[Se] uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte de seus membros tem como pressuposto a opressão de outra parte, talvez da maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, então é compreensível que esses oprimidos desenvolvam forte hostilidade em relação à cultura que viabilizam mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam muito pouco. Assim, não se pode esperar uma internalização das proibições culturais nos oprimidos; pelo contrário, eles não se dispõem a reconhecê-las, empenham-se em destruir a própria cultura, e eventualmente em abolir seus pressupostos. A hostilidade à cultura dessas classes é tão evidente que não se deu atenção à hostilidade mais latente das camadas favorecidas da sociedade. Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito e induz à revolta um número tão grande de participantes não tem perspectivas de se manter duradouramente, nem o merece.10

Nessa perspectiva, a promoção da igualdade torna-se um vetor ético indispensável à realização do estado de direito e à convivência social.

4. O UTILITARISMO

Atribui-se igual importância aos ganhos e às perdas de utilidades de todos, sem exceção11.

O princípio fundamental do igualitarismo é dar peso igual aos interesses iguais de todas as pessoas12. Por isso, o utilitarismo leva em consideração a igualdade em determinado ato, não as suas consequências. Por exemplo, se um pai presenteia cada um de seus dois filhos com uma bola idêntica, sob o ponto de vista do ato foi plenamente satisfeito o conceito de igualdade13. Contudo, se um dos filhos fica feliz com o presente e o outro não, não se conseguiu promover a igualdade no plano das consequências (deixar feliz cada um dos filhos)14. Com efeito, o critério de igualdade de felicidade15 é uma das formas mais inseguras da promoção da igualdade fática.

A noção de direitos humanos mínimos deve fugir ao modelo utilitarista positivo, posto que é impossível universalizar o conceito de felicidade, que é altamente subjetivo. As qualidades de vida das pessoas são muito diferentes para que seja possível reduzi-las a um denominador comum (v.g., certamente quase todos pretendem ser saudáveis, livres, abastados e bem-sucedidos, mas há muitas pessoas saudáveis, livres, ricas e bem-sucedidas que não são felizes).

Por outro lado, é eticamente defensável um utilitarismo negativo: a construção de um conceito de direito que seja capaz de criar condições mínimas para prevenir a infelicidade do maior número possível de pessoas e na maior medida possível16. Portanto, a noção de mínimo existencial deve ser buscada no núcleo dos valores constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, na cláusula do estado social e no princípio da isonomia.

5. A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Há diversos precedentes em que o conceito de mínimo existencial é utilizado para fundamentar, por exemplo, a manutenção de rede assistencial à saúde de criança e de adolescente17; o direito do preso à saída da cela duas horas por dia para banho de sol18; o custeio pelo Estado de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), nos casos de urgência e de inexistência na rede pública19; a matrícula de crianças em unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais20; ou, ainda, a impossibilidade de suspensão do devedor, por conselho de fiscalização profissional, do exercício laboral por inadimplência de anuidade21.

Um dos maiores responsáveis pela incorporação do mínimo existencial na fundamentação dos direitos humanos fundamentais, pelo Supremo Tribunal Federal, foi o então ministro Celso de Mello:

A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV).22

Não obstante esteja o mínimo existencial contemplado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é papel da doutrina explicitar os contornos teóricos deste singular conceito jurídico.

6. PARÂMETROS DO MÍNIMO EXISTENCIAL

Não há parâmetros exatos para dizer o que seja o mínimo existencial. Isso não impede a sua conceituação, embora transfira tal tarefa para a argumentação jurídica, lugar fértil para a discussão de opiniões doutrinárias e jurisprudenciais.

À guisa de ilustração, Ricardo Lobo Torres sustenta que, como o mínimo existencial não tem conteúdo específico, qualquer direito – ainda que, originalmente, não seja fundamental, desde que possua dimensão essencial, inalienável e existencial – pode ser contemplado nesse conceito, isto é, pode abranger direitos tributários, financeiros, previdenciários, civis, penais, internacionais, cosmopolitas e outros mais23.

Por sua vez, Luigi Ferrajoli inclui naquilo que denomina “mínimo vital” os direitos sociais à saúde, à educação, à subsistência e à previdência24.

Já Ana Paula de Barcellos concebe o mínimo existencial com quatro elementos: três materiais e um formal (educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça)25.

Ingo Wolfgang Sarlet inclui na problemática da conceitualização do mínimo existencial os direitos ao salário mínimo, à assistência social, à educação e à previdência social26.

Com efeito, apesar de não haver um ato normativo específico, a composição do mínimo existencial se dá por força da hermenêutica jurídica, dentro das balizas trazidas pela Constituição e pelos tratados internacionais.

Destaque-se a regra contida no art. 11, primeira parte, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao dispor que os “Estados-membros do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida”. Tal regra permite o exercício do controle judicial de convencionalidade de atos normativos internos que venham a traçar ou se omitam de elaborar critérios mínimos de renda básica ao cidadão.

7. ART. 1º, CAPUT E § 2º, DA LEI 10.835/04

Os direitos fundamentais sociais impõem obrigações de fazer por parte do Estado e exigem políticas públicas que, para serem executadas, dependem de recursos públicos adequados aos seus fins.

Na eleição das prioridades, a tentativa de conceituar “mínimo existencial” deve considerar os sujeitos destinatários da tutela jurídica e, sob esse prisma, construir outra escala de prioridades. Por exemplo, o art. 227 da CF/88, ao afirmar que crianças e adolescentes são seres vulneráveis no grupo familiar e social, assegurou, com absoluta prioridade, um conjunto de direitos fundamentais, mencionando expressamente os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O conteúdo da garantia do mínimo existencial há de ser percebido nas vivências individual e social. Deve ser desenvolvido, progressivamente, em uma perspectiva aberta e casuística, sempre voltada à proteção da pessoa e sua respectiva dignidade. A garantia desse padrão mínimo se destina a evitar a perda total da função dos direitos fundamentais, de modo que seu conteúdo seja esvaziado e, portanto, destituído de sentido27.

No entanto, pela própria indefinição do mínimo existencial, nos contextos individual e social, jamais poderá o Judiciário negar-se a julgar determinada demanda (art. 5º, inc. XXXV, CF) alegando falta de interesse processual (ausência de condição da ação). Caso contrário, restaria rechaçado o próprio caráter aberto e casuístico inerente ao conceito de mínimo existencial. Por isso, o Supremo Tribunal Federal tem afirmado que a reserva do possível não é um argumento oponível à realização do mínimo existencial:

A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina.

A cláusula da reserva do possível − que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição − encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes.28

A existência de um direito fundamental ao mínimo existencial possui autonomia em relação à previsão de direitos fundamentais sociais, o que permite, inclusive, que tais direitos sejam interpretados à luz do mínimo existencial29. Ademais, mesmo que não se reconheça a priori

um direito fundamental social como direito subjetivo (ou seja, como não integrante do mínimo existencial), a preservação do mínimo de existência condigna deve ser sempre qualificada como direito subjetivo e merece ser assegurada, ao menos, nos mesmos termos que os direitos fundamentais de defesa.

8. O NÚCLEO INTANGÍVEL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A não observância do mínimo existencial acarreta ofensa à dignidade da pessoa humana. Nenhum Estado e nenhuma sociedade podem abrir mão do mínimo existencial, sob pena de reduzir as pessoas a meros meios (e não fins) dos direitos.

O valor da dignidade humana, ao mesmo tempo, limita os direitos fundamentais (para que, em um caso concreto, se dê a maior efetivação de um princípio em colisão com outro) e inibe restrições excessivas, mediante a previsão de um conteúdo inatingível, a ser conceituado como mínimo existencial30. Qualifica-se, destarte, como princípio de defesa das exigências mínimas de existência e de direito à obtenção de prestações públicas para assegurar a efetivação das condições materiais de existência condigna, tendo a mesma densidade jurídico-subjetiva dos direitos de defesa31.

Entretanto, ao se tentar buscar os contornos conceituais do mínimo existencial no valor da dignidade da pessoa humana, não se deve perder de vista que a dignidade humana não pode ser pensada como um valor absoluto, porque o direito positivo jamais seria capaz de prever fórmulas capazes e isentas de dúvidas quanto à complexa dinâmica dos valores da pessoa32.

Quando há referência ao mínimo existencial, o que está em causa é a determinação, em uma certa sociedade concreta e em momento histórico delimitado, de quais são as condições mínimas que devem ser asseguradas pelo Estado para uma existência digna.

Nesse sentido, a resolução do Parlamento Europeu, de 10 de outubro de 2010, a respeito da “renda mínima na luta contra a pobreza e a promoção de uma sociedade inclusiva na Europa”, reafirma o dever dos Estados de assegurar uma renda mínima como medida indispensável para combater à exclusão social, o crescente processo de desigualdade e o aumento da pobreza.

Do mesmo modo, salienta-se a Lei 13.982/20, que, ao encetar medidas excepcionais de proteção social, concedeu auxílio emergencial a trabalhadores de baixa renda durante a crise sanitária trazida pela covid-19.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, o constitucionalismo multinível33 – marcado pelo pluralismo jurídico (que

potencializa a efetividade das normas de direito interno e de direito internacional) – confere ao Poder Judiciário o poder-dever, pelo controle tanto de constitucionalidade quanto de convencionalidade, de buscar a máxima efetivação dos direitos humanos fundamentais.

A negação do mínimo existencial para uma quantidade expressiva de pobres brasileiros significaria colocá-los à margem do estado democrático de direito. Isso tornaria a cidadania censitária e os direitos fundamentais privilégios dos grupos hegemônicos, em manifesta contradição aos valores éticos e jurídicos consagrados na Constituição da República e em tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário.

O combate à pobreza e a realização da cidadania dependem de condições materiais mínimas para o exercício dos direitos humanos, o que reclama a regulamentação de uma renda básica aos necessitados como um meio indispensável de promoção da justiça e de inclusão social.

FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: Renda básica, cidadania, direitos humanos e mínimo existencial. Title: Basic income, citizenship, human rights and existential minimum. Autor: Eduardo Cambi. Promotor de Justiça. Assessor da Procuradoria-Geral de Justiça. Coordenador da Escola Superior do Ministério Público do Paraná. Presidente do Colégio de Diretores de Escolas do Ministério Público brasileiro (CDEMP). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestre e doutor pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor pela Università degli Studi di Pavia. Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Diretor de Pesquisa do Instituto Paranaense de Direito Processual. Resumo: A Lei 10.835/04 instituiu a renda básica de cidadania como um direito de todos os brasileiros e dos estrangeiros residentes no país há pelo menos cinco anos, benefício que deve atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando desenvolvimento da nação e as possibilidades orçamentárias. Os direitos humanos pressupõem o direito a ter direitos. A cidadania não é apenas um fato ou um meio, mas também um princípio. Conforme Hannah Arendt, a privação da cidadania afeta a condição humana e o ser humano privado de seu estatuto político perde a sua substância, que é ser tratado pelos outros como semelhante. Abstract: Law 10.835/04 established the basic citizenship income as a right of all Brazilians and foreigners residing in the country for at least five years, a benefit that must meet the minimum expenses of each person with food, education and health, considering the development of nation and budgetary possibilities. Human rights presuppose the right to have rights. Citizenship is not just a fact or a means, but also a principle. According to Hannah Arendt, the deprivation of citizenship affects the human condition and the human being deprived of his political status loses its substance, which is to be treated by others as a similar person. Data de recebimento: 30.04.2021. Data de aprovação: 02.06.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 4 – #671 – ago./set. 2021, págs … . Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

EDUARDO CAMBI: Renda básica, cidadania e mínimo existencial/doutrina, 2

Renda básica, cidadania e mínimo existencial/doutrina, 2

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STF, RE 647.885, Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 27.04.2020, pub. DJe 19.05.2020.

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TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. NOTAS 1 STF, MI 7.300, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.03.2021, Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886456. Acesso em: 27 mar. 2021. 2 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464858&ori=1. Acesso em: 30 abr. 2021. 3 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 4 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 151. 5 Idem. Ibidem. 6 Idem. p. 148. 7 Idem. p. 149. 8 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 23-24. 9 RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. Bari-Roma: Laterza, 2012. p. 216-217. 10 O futuro de uma ilusão. In: Obras completas. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos [1926-1927]. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 134-135. 11 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 326-327. 12 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 3. ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2020. p. 490-491. 13 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 405. 14 Idem. Ibidem. 15 A preocupação com a busca da felicidade encontra contornos jurídicos na Declaração de Independência dos Estados Unidos, redigida por Thomas Jefferson: “Sustentamos que estas verdades são evidentes, que todos os homens foram criados iguais, que foram dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, e entre eles estão a Vida, a Liberdade, a Busca da Felicidade”. 16 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Trad. de Antônio Ulisses Cortês. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. p. 258-263. 17 STF, RE 581.352-AgR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 29.10.2013, pub. DJe 22.11.2013. 18 STF, HC 172.126, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 10.10.2020, pub. DJe 01.12.2020. 19 STF, ARE 727.864-AgR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 04.11.2014, pub. 13.11.2014. 20 STF, ARE 639.337-AgR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, pub. DJe 15.09.2011. 21 STF, RE 647.885, Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 27.04.2020, pub. DJe 19.05.2020. 22 STF, ARE 639.337-AgR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, pub. DJe 15.09.2011. 23 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 13-14. 24FERRAJOLI, Luigi. I fondamenti dei diritti fondamentali. In: Diritti fondamentali. Un dibatito teorico. Coord. Ermanno Vitale. 2. ed. Roma-Bari: Laterza, 2002. p. 333. 25BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 258. 26SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 287 e ss. 27QUEIROZ, Cristina Queiroz. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais. Princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 93. 28 STF, ARE 639.337-AgR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, pub. DJe 15.09.2011. 29SARLET, Ingo Wolgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolgang; TIMM, Luciano Benetti (org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 25. 30GUERRA FILHO, Willis Santiago. Por uma teoria fundamental da Constituição: enfoque fenomenológico. Disponível em: http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/ [http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/ arquivos/131006.d.pdf]. Acesso em: 05 maio 2019. p. 15. 31CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina Editora, 1998. p. 343. 32ANDRADE, José Carlos Vieira de. O “direito ao mínimo de existência condigna” como direito fundamental a prestações estaduais positivas – Uma decisão singular do Tribunal Constitucional. Anotações ao acórdão do Tribunal Constitucional 509/02. Jurisprudência constitucional, nº 1. jan./mar. 2004. p. 29. 33PERNICE, Ingolf. The global dimension of multilevel constitutionalism. A legal response to the challenges of globalization. umbolt-Universität zu Berlin. WHI-Paper 9/08, 2006, p. 3.

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