Os perigos do plebiscito sem ‘freio de mão’

A lei 9.079 de 1998, que regulamentou os institutos de consulta popular tratou de deixar as porteiras abertas. As matérias podem ser de natureza constitucional, legislativa ou administrativa, sem prever restrições, por exemplo, às cláusulas pétreas, aos direitos fundamentais e à democracia

Marcus Gomes. REDATOR DA BONIJURIS

O jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho guarda um pé atrás com a democracia direta, aquela plebiscitária, decidida pelos cidadãos em assembleia, tal como praticada na antiga Roma. Diz ele: “a democracia direta é uma recordação vaga ou uma curiosidade quase que folclórica”.

Ele refere-se, obviamente, ao tempo em que o plebiscito foi inicialmente fonte jurídica da plebe, e que, depois equiparando-se às leis romanas, era realizado em praça pública, com uma ou duas centenas de pessoas. O voto era manifestado em tábuas, que continham abreviaturas: UR de uti rogas (como pedes). AB para antiquo iure utor (voto pelo direito antigo) e NL para non liquet (não está claro), que significava abstenção.

Aprovado o texto, ele era afixado no fórum, em tábuas de madeira ou bronze para que o povo pudesse consultá-lo e cumpri-lo, tal como descrevem os professores de direito, Cláudio Henrique de Castro, da Universidade Tuiuti do Paraná, e José Isaac Pilati, da Universidade Federal de Santa Catarina, em artigo publicado na edição de abril deste ano na Revista Bonijuris.

O plebiscito e o referendo, institutos semelhantes mas não idênticos, estão previstos no artigo 14º da Constituição da República, incisos I, II e II, juntamente com os projetos de iniciativa popular, nas seguintes bases: o plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo e, se aprovado, tem força de lei. Já o referendo é convocado posteriormente à aprovação de lei e trata-se de consulta que, independente do voto da maioria, pode ser acatada ou rejeitada pelo legislador.

Capa da Revista Bonijuris de abril / maio de 2019, onde foi publicado artigo dos professores Cláudio Henrique de Castro e José Isaac Pilati acerca do plebiscito: pouco uso e baixo alcance.

Parece bonitinho, mas, no caso brasileiro, tem um quê de ordinário ou de comum. Tanto o plebiscito quanto o referendo tratam de assuntos tão amplos quanto podem ser. A lei 9.079 de 1998, que regulamentou os institutos tratou de deixar as porteiras abertas. As matérias podem ser de natureza constitucional, legislativa ou administrativa, sem prever restrições, por exemplo, às cláusulas pétreas, aos direitos fundamentais, à dignidade da pessoa humana.

No que diz respeito à abstenção, há elogios a fazer, uma vez que a falta de clareza vista pelo cidadão pode fazer com que o poder constituído entenda essa manifestação como um “talvez sim” e contabilize-a a favor.

Foi o que ocorreu em 1933 quando o então ministro das Finanças de Portugal, Antônio de Oliveira Salazar, concentrou, através de plebiscito, os poderes de governo em sua figura. A estratégia foi somar as abstenções aos votos “sim”, dando a entender que a não-manifestação do cidadão português redundava em “aceitação”. É o que o teórico e jurista francês León Duguit (1859-1928), especialista em direito público, definiu como “exemplo clássico do uso delegatório de um plebiscito”. Ou seja, transferir ou conceder poderes a alguém. No caso português, esse alguém seria Salazar, alçado à condição de ditador.

Não apenas o método adotado (a soma de votos “sim” e abstenções) parece perverso a qualquer observador, como também o elemento delegatório. Ora, a função primeira do plebiscito é participante, jamais uma impostura. O que apetece a este instituto e ao referendo é controlar o poder representativo.

Se através de consulta popular concede-se um mandato ampliado a um ditador e a seus representantes, a função do plebiscito como “freio de mão” do autoritarismo torna-se inócua. Há casos recentes, como o da Venezuela, em que a consulta popular exerceu seus objetivos ao barrar uma reforma constitucional polêmica que ampliaria o mandato do presidente ad eternum. Por óbvio, as abstenções não foram contadas como votos “sim”, tal como ocorreu em Portugal. Nenhuma constituição moderna admitiria esse artifício.

A questão que envolve a constituição brasileira em seu artigo 14º e a lei 9.079 de 1998 é a ausência de previsão, confirmada em cláusulas pétreas, que assegure que os plebiscitos e referendos de maneira alguma poderão ser usados de forma delegada, para exacerbar mandatos ou reduzir a democracia. Ainda que não se vislumbre tal possibilidade (três toques na madeira), há de se admitir que em uma constituição de tão larga proteção aos direitos fundamentais e ao estado democrático seria até natural que a salvaguarda estivesse prevista. Não está. E isso preocupa.

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