O preposto de M.E ou E.P.P diante do juizado especial

Microempresas e empresas de pequeno porte, não possuem tratamento diferenciado por parte da legislação. -- Por Ricardo Bernardes Dias e Diogo Pereira -- (Bonijuris #674 Fev/Mar 2022)

Ricardo Gueiros Bernardes Dias PÓS-DOUTORADO EM DIREITO PELA UNIVERSITY OF HOUSTON

Diogo Abineder Ferreira Nolasco Pereira MESTRE EM DIREITO PROCESSUAL PELA UFES

Microempresas e empresas de pequeno porte, quando no polo ativo, não possuem tratamento diferenciado por parte da legislação brasileira. Isso fere direitos fundamentais

A Lei 9.099/95, que trata dos juizados especiais cíveis e criminais, estabelece em seu art. 9º, § 4º, que o réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto, com a redação dada pela Lei 12.137/09.

Diante de uma possível interpretação literal do dispositivo legal, o Fórum Nacional de Juizados Especiais editou o Enunciado 141 informando que microempresas e empresas de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente.

Sabendo que as microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP) podem propor ação perante os juizados especiais cíveis, verifica-se um possível tratamento discriminatório quando essas pessoas estiverem no polo ativo da relação jurídica processual.

Pretende-se induzir a compreensão da necessidade de uma interpretação adequada à Constituição. Isso porque não há um direito na lei e outro na Constituição.

O direito fundamental de acesso à justiça não pode sofrer restrições, mormente em relação às microempresas e empresas de pequeno porte que já possuem, em razão das suas particularidades, um tratamento diferenciado pela legislação brasileira.

Mostra-se, então, necessária uma profunda reflexão de que a interpretação que tem prevalecido compromete o princípio da isonomia e por isso necessita urgentemente de uma releitura.

1. O CONTEXTO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS

A origem do que hoje se conhece, no Brasil, como juizados especiais, remonta aos estudos do Projeto de Florença, que, sob a direção de Mauro Cappelletti, buscava criar condições para um acesso à justiça como maneira de efetivar a garantia dos direitos dos cidadãos.

A justiça é o fundamento do direito, sendo esse, necessariamente, a condição que torna possível a convivência entre os homens. Essa era a inspiração nos estudos da década de 1970. Segundo Cappelletti (2002, p. 8):

Nossa tarefa, neste relatório, será o de delinear o surgimento e desenvolvimento de uma abordagem nova e compreensiva dos problemas que esse acesso apresenta nas sociedades contemporâneas. Essa abordagem, como se verá vai muito além das anteriores. Originando-se, talvez, da ruptura da crença tradicional na confiabilidade de nossas instituições jurídicas e inspirando-se no desejo de tornarem efetivos – e não meramente simbólicos – os direitos do cidadão comum, ela exige reformas de mais amplo alcance e uma nova criatividade. Recusa-se a aceitar como imutáveis quaisquer dos procedimentos e instituições que caracterizam nossa engrenagem de Justiça.

O autor italiano Mauro Cappelletti trabalha com o conceito de acesso à justiça em dimensões, sob a forma de três “ondas”. Para esse autor (2002, p. 8):

A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema dever ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

A primeira “onda” aborda os meios que facilitam o acesso dos economicamente pobres à justiça, fazendo uma análise das instituições que prestam assistência judiciária aos necessitados, trazendo a importância da efetivação da dignidade do homem como objeto do alcance do acesso ao Judiciário. Infelizmente, pessoas em condições de vulnerabilidade socioeconômica formam grande parte da população, privadas dos direitos fundamentais. Assim, o acesso à justiça é a solução para que direitos e garantias sejam repercutidos na vida de cada cidadão.

A segunda “onda” é entendida como a que pode proporcionar a tutela jurídica dos interesses difusos. Essa onda voltou-se às esferas de proteção ao meio ambiente e ao consumidor.

A terceira “onda” refere-se a medidas que reestruturariam o Poder Judiciário, visando à celeridade no trâmite processual, para que qualquer lesão ou ameaça a direito

seja prestada jurisdicionalmente pelo Estado, em tempo hábil e justo. Diante dessa possibilidade de reformas apresentada, segundo Cappelletti (2002, p. 8), o objetivo dessa onda é “atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo”.

Nesse contexto, pensava-se em instituir procedimentos diferenciados para determinadas causas menos complexas – “pequenas causas” – que passaram pela realidade à época a serem encaradas com alguma relevância social.

No Brasil, o tema “acesso à justiça” só passou a ter relevância transformadora no fim da ditadura militar, com a aprovação da Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984, que criou os juizados especiais de pequenas causas e que tinha como vetor proporcionar o acesso à justiça, abarcando as linhas acima delineadas.

Com a Constituição de 1988, incumbiu-se à União, ao Distrito Federal e aos estados a criação de juizados especiais para “a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade (art. 98, I)”.

Em 26 de setembro de 1995, foi aprovada a Lei 9.099, revogando a Lei 7.244/84, a qual passou a dispor sobre os juizados especiais cíveis e criminais.

Com isso, “introduziu-se no mundo jurídico um novo sistema ou, ainda melhor, um microssistema de natureza instrumental e de instituição constitucionalmente obrigatória destinado à rápida e efetiva atuação do direito” (TOURINHO NETO; FERREIRA JR., 2005, p. 39).

Anote-se que este estudo se baseará apenas no aspecto cível desse microssistema.

Ademais, atualmente existem três leis que tratam dos juizados especiais. A já citada Lei 9.099/95, a Lei 10.259/01, que trata dos juizados especiais federais, e a Lei 12.153/09, que aborda os juizados especiais das fazendas públicas. As mesmas, em conjunto, formam o microssistema dos juizados especiais, mas a Lei 9.099/95 deve ser aplicada de forma subsidiária às demais e, por essa razão, o foco deste estudo nela residirá.

Isso porque, especificamente quanto ao objeto desta pesquisa – a representação processual por preposto –, a fonte normativa está contida apenas na Lei 9.099/95 em seu art. 9º, § 4º.

Entre os fundamentos de criação dos juizados especiais, identificam-se a busca pela acessibilidade, e a qualificação da prestação jurisdicional de modo tempestivo e adequado às causas de menor complexidade. Isso com o intuito de promover a popularização do acesso à justiça por meio de um mecanismo de justiça mais barato e informal, com foco no

gerenciamento do desempenho da atividade jurisdicional por meio da resolução consensual de conflitos.

Cândido Rangel Dinamarco (1996) advertiu que “não se trata somente de regras procedimentais simplificadoras, mas disso e da implantação de um novo processo, nova configuração das relações entre juiz e partes no processo, novo modo de tutelar direitos”.

No art. 2º da Lei 9.099/95 verificam-se os critérios orientadores e informadores dos juizados especiais, quais sejam: oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual, celeridade e autocomposição.

Para a definição do conceito de causas de menor complexidade e que, portanto, estariam abrangidas pela competência dos juizados especiais, buscou-se primeiro atender ao critério do valor da causa, estabelecendo um teto com base no valor do salário-mínimo e ainda a alguns critérios materiais de determinação de competência.

A Lei 9.099/95 (art. 3º) fixa o teto de 40 vezes o valor do salário-mínimo e as leis 10.295/01 (art. 3º) e 12.153/09 (art. 2º) estabelecem o teto de 60 vezes o valor do salário-mínimo.

Feitas essas brevíssimas linhas apenas para contextualizar o microssistema dos juizados especiais, passar-se-á a tratar das pessoas que neles podem promover ação.

2. ME e EPP E A CAPACIDADE PARA PROPOREM AÇÕES PERANTE OS JUIZADOS ESPECIAIS

A redação original do art. 8º, § 1º, da Lei 9.099/95 estabelecia que somente as pessoas físicas capazes fossem admitidas a propor ação perante o Juizado Especial, excluídos, inclusive, os cessionários de direito de pessoas jurídicas.

O corte metodológico proposto neste estudo visa analisar apenas aqueles que podem propor ação no microssistema dos juizados especiais, ou seja, que podem ser autores.

Há que se destacar também que não se pode confundir a legitimidade ativa, que é a pertinência subjetiva da ação, e cabe ao titular do interesse afirmado na pretensão com a capacidade de estar em juízo que permite, nesse caso, que a parte integre relação processual nos juizados especiais.

Como delineado, a criação dos juizados especiais se deu pela busca da acessibilidade e da popularização do acesso à justiça, já que se vislumbrava um mecanismo

de justiça mais barato e informal, isso com a finalidade de que os cidadãos de menor potencial financeiro pudessem tutelar seus direitos junto ao Poder Judiciário.

Certamente, “a intenção do legislador era permitir maior acesso à Justiça aos menos afortunados ou hipossuficientes” (TOURINHO NETO; FERREIRA JR., 2005, p. 146) e, assim, a limitação de permitir que apenas as pessoas físicas capazes pudessem propor ações naquele microssistema perece atender a esse critério.

Então, quaisquer das pessoas jurídicas, inicialmente, não foram incluídas como aptas a promoverem ação nos juizados especiais.

Sabemos muito bem que não raras são as hipóteses em que encontramos microempresas tão ou mais hipossuficientes do que muitas pessoas físicas. A lei deixou de atender, no início, à realidade social, econômica e jurídica, pois essas entidades comumente deixavam de ter acesso aos tribunais por motivos financeiros agravados pela morosidade na obtenção da prestação da tutela jurisdicional, absolutamente desproporcional em relação a sua qualidade e capacitação (TOURINHO NETO; FERREIRA JR., 2005, p. 146).

Com a criação do Simples Nacional – Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – pela Lei 9.317/96, criou-se um regime tributário simplificado e diferenciado para as micro e pequenas empresas que foram definidas de acordo com o critério de sua renda bruta, nos termos da legislação pátria. Já em 1999, com a Lei 9.841, que instituiu o Estatuto da Microempresa de Pequeno Porte, passou-se a permitir o seu ingresso nos juizados especiais na condição de autores, ou seja, promoverem ações no microssistema.

Veja-se que o critério adotado também passou a ser o da hipossuficiência.

Sem embargo, a Lei Complementar 123/06 revogou ambas as leis 9.317/96 e 9.841/99 e alterou o art. 8º, § 1º, da Lei 9.099/95, passando a prever que as pessoas enquadradas como microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte definidas na referida lei complementar poderiam propor ação perante o microssistema dos Juizados Especiais.

A microempresa consiste em pessoa jurídica de direito privado cuja receita bruta é de até R$ 360.000 por ano. Já a empresa de pequeno porte constitui-se em pessoa jurídica de direito privado que deve auferir, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000 e igual ou inferior a R$ 4.800.000.

Como dito, a ampliação do acesso aos juizados especiais para essas pessoas, certamente, teve o condão de privilegiá-las tal como se pensou quanto à instituição de um regime fiscal diferenciado ao qual estão submetidas, que, inclusive, encontra guarida na Constituição Federal, art. 170, IX, incluído pela Emenda 6, de 1995.

3. TESES PARA A COMPREENSÃO DO PROBLEMA

Como informado no início, o problema desta pesquisa reside na necessidade de proporcionar tratamento isonômico às microempresas e empresas de pequeno porte quando representadas por prepostos junto aos juizados especiais cíveis.

Isso porque a Lei 9.099/95 estabelece em seu art. 9º, § 4º, que o réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, pode ser representado por preposto, o representante da pessoa jurídica que, credenciado e habilitado por instrumento público ou particular, possui poderes para representar o seu representante legal na prática de atos diversos, por exemplo, a realização de audiências.

Ao ser dada interpretação apenas literal ao enunciado citado, verifica-se que a representação por preposto no âmbito dos juizados especiais cíveis só será possível para o réu, ou seja, para quem estiver no polo passivo da relação processual e, com isso, quando a microempresa e a empresa de pequeno porte estiverem promovendo ação no microssistema, somente poderá ser representada pelo seu sócio e nunca por preposto.

Essa interpretação literal parece ter prevalecido no XXVIII Encontro do Fonaje – Fórum Nacional dos Juizados Especiais – realizado em Salvador (BA) em novembro de 2010.

Na ocasião foi editado o Enunciado 141 com a seguinte redação: “A microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente.”

A inspiração normativa para essa interpretação literal decorre do princípio da pessoalidade que, no âmbito dos juizados especiais, é a exigência da presença pessoal da parte autora aos atos processuais. Nesse contexto é possível extrair a pessoalidade da combinação dos arts. 2º e 9º da Lei 9.099/95.

Muito embora não se trate do objeto deste estudo, é necessário advertir que não se vislumbra a existência de um princípio da pessoalidade, mas sim de uma regra que se reconhece serem duas espécies distintas de normas (ALEXY, 2011, p. 87).

É cediço que princípios são normas ordenando que algo seja realizado na maior medida possível (ALEXY, 2011, p. 90), por exemplo, os princípios da oralidade; autocomposição; simplicidade; informalidade; economia processual; e celeridade. Já as regras são normas sempre integralmente satisfeitas ou integralmente não satisfeitas, ou seja, seu destinatário deve fazer exatamente aquilo que se exige (ALEXY, 2011, p. 91).

Daí porque a exigência de que as partes devem comparecer pessoalmente no âmbito dos juizados especiais (art. 9º) deve ser compreendido como uma regra.

Certo é que o objetivo da pessoalidade seria o de viabilizar a resolução do conflito pela via da conciliação. Entretanto, trata-se de uma visão equivocada e minimalista, conforme se verá, até porque tal exigência deveria abranger ambas as partes, autor e réu.

Muito embora os enunciados do Fonaje não sejam normas jurídicas de caráter imperativo, servindo apenas de orientações e, portanto, não tendo qualquer força vinculante, parece haver um entendimento majoritário identificado em julgados dos juizados especiais que seguem tal orientação.

Sentença Vistos etc. Na forma do disposto no art. 9º, § 4º, da Lei nº 9.099/95, a pessoa jurídica pode ser representada por preposto credenciado quando figurar no polo passivo da demanda. No entanto, em litigando a pequena empresa na qualidade de autora, deverá o empresário ou sócio dirigente comparecer pessoalmente, sob pena de extinção do feito, conforme entendimento sedimentado no Enunciado nº 141 do FONAJE, verbis: A microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente. Cabia à parte autora se fazer representar, inclusive em audiência, pelo representante legal instituído no estatuto social. No caso em análise a parte autora, classificada como sociedade civil de interesse público, compareceu em audiência representada pela preposta Sra. R.B.L.F., conforme ata id 1531003. Por essa razão, considerando que a representante da empresa presente na audiência referida não figura na condição de sócio dirigente, ou mesmo de diretor, no documento id 1334738 e 1334742, não restou demonstrado que se enquadra nas hipóteses previstas pelo referido enunciado, devendo o feito ser extinto, sem resolução do mérito, com base no artigo 51, I, da Lei nº 9.099/95. Desta forma, não tendo a parte autora comparecido pessoalmente ou adequadamente representada à audiência, julgo extinto o processo sem resolução de mérito e determino o seu arquivamento, nos termos do art. 51, inciso I da Lei 9099/95. Condeno a parte reclamante ao pagamento das custas processuais. Publique-se, registre-se, intimem-se, cumpra-se e, após o trânsito em julgado, arquive-se. Timon/MA, 4 de abril de 2016. Rogério Monteles da Costa Juiz de Direito.

Veja-se, inclusive, que caso o autor, pessoa jurídica, se faça representar em audiência por preposto, haverá como consequência a extinção do processo, sem resolução

do mérito, nos termos do art. 51, I, da Lei 9.099/95, em razão do entendimento de que, nesses casos, considera-se o autor ausente.

Em contraponto ao entendimento do Fonaje está o Enunciado 61 do Conselho da Justiça Federal, fruto da II Jornada de Direito Comercial realizada em Brasília (DF) em fevereiro de 2015.

Enunciado 61 − Em atenção ao princípio do tratamento favorecido à microempresa e à empresa de pequeno porte, é possível a representação de empresário individual, sociedade empresária ou EIRELI, quando enquadrados nos respectivos regimes tributários, por meio de preposto, perante os juizados especiais cíveis, bastando a comprovação atualizada do seu enquadramento.

A utilização de tais orientações neste estudo tem apenas natureza persuasiva, pois, como dito, não se trata de normas jurídicas de caráter vinculante. Tanto que se posicionam em sentido diametralmente oposto, e isso em nada compromete a unidade e coerência do ordenamento jurídico, que, como se concluirá, deve ter como vetor a Constituição.

É possível identificar essa contradição nos próprios enunciados do Fonaje, por exemplo, no caso do 20, ao dispor que “o comparecimento pessoal da parte às audiências é obrigatório. A pessoa jurídica poderá ser representada por preposto”.

Muito embora seja preciso reconhecer que a edição do Enunciado 20 se deu antes da alteração do art. 8º, § 1º, da Lei 9.099/95 pela Lei Complementar 123/06, que passou a prever que as pessoas enquadradas como microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte poderiam propor ação perante o microssistema dos juizados especiais, verifica-se ausência de coerência interna dentro da própria orientação daquele microssistema.

Certo é que a regra da pessoalidade não parece ter o mesmo peso na interpretação dada naquele microssistema. Sabe-se que a pessoalidade, nesse contexto, decorre dos atos jurídicos personalíssimos que devem ser praticados pela própria pessoa e, por isso, não admitiriam a representação.

É esse o motivo de a Lei 9.099/95 utilizar a expressão “assistência” ao invés de “representação” por advogado nas causas até a decisão por meio de sentença proferida no primeiro grau de jurisdição, exigindo apenas a representação em grau recursal.

Note-se com isso o desejo de que as partes se façam presentes nos atos. Porém, sabe-se que no ordenamento jurídico brasileiro poucos atos não podem ser feitos por representação, como é o caso do testamento, o exercício do direito de voto, do poder

familiar, da adoção, entre outros. O maior fundamento para o caráter personalíssimo desses atos é a segurança jurídica.

Há ainda aqueles atos que podem ser feitos por representação, como no caso dos negócios jurídicos em geral, o casamento, a postulação em juízo pelo advogado, entre outros.

Conforme denunciado, o comparecimento pessoal das partes teria o objetivo de buscar, do melhor modo, a resolução do conflito por meio da autocomposição, mas tal anseio se trata, na verdade, de um reducionismo ilusório.

Ora, se a autocomposição é possível diante de objeto lícito e manifestação bilateral de vontades das partes, qual o motivo de não se admitir a representação tal qual ocorre nos negócios jurídicos em geral? Certamente tal pergunta é meramente retórica.

Curioso ainda é que essa interpretação equivocada não encontra a mesma guarida quando se trata do réu pessoa jurídica, que, diante da interpretação literal (art. 9º, § 4º) pode ser representado por outrem (preposto).

No caso do réu ser pessoa jurídica, o argumento é diametralmente oposto, pois a pessoalidade por meio do sócio ou representante legal da pessoa jurídica representaria o colapso dos juizados especiais em razão dos réus serem, em geral, bancos, prestadores de serviços telefônicos e seguros, conforme mapeamento feito pelo Conselho Nacional de Justiçai. Veja-se que há um paradoxo.

Basta pensar nos sócios dessas pessoas jurídicas tendo de participar, pessoalmente, de todas as audiências de conciliação, entre outros atos, nos juizados especiais de todo o país.

Logo, essa premissa – da maior possibilidade de resolução consensual pela pessoalidade – é totalmente incomensurável. Não se tem notícia de pesquisa empírica que buscou demonstrar que a resolução de conflitos pela autocomposição é maior quando as partes estão pessoalmente presentes do que quando estão representadas. Se tal circunstância fosse possível, difícil seria compreender o que ocorre na Justiça do Trabalho, órgão do Poder Judiciário com os maiores índices de conciliação, conforme se verifica do relatório Justiça em Números, do CNJ, em que a figura do preposto é comum.

Isso, por si só, já desmonta o argumento daqueles que entendem que o que se buscou com a pessoalidade foi a resolução consensual dos conflitos nos juizados especiais.

Por isso, entende-se que a pessoalidade é norma que apenas fala em nome do acesso por meio da conciliação de conflitos, mas funciona como mecanismo nocivo ao acesso à justiça, servindo apenas como instrumento de diminuição de demanda perante o Poder Judiciário (NUNES; TEIXEIRA, 2013, p. 86).

Ademais, a atuação do preposto ocorreria, em regra, tão somente em determinado ato processual, qual seja, na realização de audiências. Logo, não se mostra razoável exigir uma regra – pessoalidade – que só tenha efeito prático em um ato processual, pois ao postular em juízo, apresentar requerimentos, entre outros atos, as partes o fazem comprometidas com a regra.

Como se não bastasse tal argumento, há ainda que se considerar a razão de ser da inclusão das ME e EPP como capazes de promoverem ações nos juizados especiais.

Conforme defendido neste trabalho, a ampliação do acesso aos juizados especiais para essas pessoas teve o condão de privilegiá-las.

De acordo com a previsão do art. 170, IX, da Constituição Federal, incluído pela Emenda 6, de 1995, buscou-se a instituição de um regime fiscal diferenciado de que tais pessoas jurídicas se submeteriam.

Ora, se o ordenamento jurídico pátrio buscou dar enquadramento privilegiado a determinadas pessoas, qual a razão jurídica e racional para limitá-las no acesso à justiça? A resposta nos parece ser negativa, já que a fundamento da pessoalidade se mostra paradoxal.

Veja-se ainda que na tentativa de buscar aliar o tratamento diferenciado dispensado às microempresas e empresa de pequeno porte com o acesso à justiça, o pleno do Tribunal Superior do Trabalho, ainda no ano de 2008, editou a Súmula 377, permitindo que qualquer pessoa, mesmo que não seja funcionário, possa representar tais pessoas jurídicas na condição de preposto.

Parece que a restrição imposta às ME e EP acaba por atender também a um aspecto meramente formal, o que se coloca paradoxalmente contra os critérios informadores dos juizados especiais.

Dessa forma, “o processo, neste contexto, deve se afastar de abstrações teóricas para proteger direitos concretos e efetivos. Deve-se deformalizá-lo, simplificá-lo, porque os custos do procedimento e a complexidade são obstáculos para a efetividade” (PELEJA; OLIVEIRA, 2015, P. 71).

Logo, não há qualquer razão para o entendimento que prevalece no âmbito dos juizados especiais de que as ME e EPP, quando autoras, não possam ser representadas por prepostos.

A hipótese para tal entendimento pode ser a contenção da litigiosidade, como um filtro para não permitir o acesso ao microssistema. Isso porque, na busca de ser um sistema baseado na celeridade e na busca pela conciliação, acaba eliminando a litigiosidade a qualquer custo e em detrimento das garantias fundamentais do processo (GRECO, 2020, p. 30).

Não há, portanto, compatibilidade com o acesso à justiça qualquer restrição que comprometa a perspectiva democrática do processo.

4. PROPOSTA DE UMA LEITURA CONSTITUCIONAL PARA A QUESTÃO – PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Foi denunciado neste trabalho que a interpretação que impede a representação por preposto das ME e EPP, com base apenas na dicção literal do art. 9º, § 4º, da Lei 9.099/95 está equivocada.

Além disso, viu-se que a extinção do processo, sem resolução do mérito, nos termos do art. 51, I, da Lei 9.099/95, apresenta-se como uma consequência substancialmente prejudicial à tutela dos direitos dessas pessoas jurídicas. Isso porque qualquer interpretação do aludido dispositivo há de ser feita atendendo aos direitos e garantias da Constituição Federal.

O princípio processual da isonomia garante igualdade perante a lei e se coloca como premissa para a afirmação da igualdade perante o juiz.

Da norma inscrita no art. 5º, caput, da Constituição, brota o princípio da igualdade processual. As partes devem merecer tratamento igualitário para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p. 33). É o que se revela também das normas fundamentais do processo civil, especialmente o contido no art. 7º do CPC/15, aplicado subsidiariamente aos microssistemas de que deve ser assegurada às partes a paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais.

É imprescindível, pois, que se deva compatibilizar os comandos constitucionais, pois, conforme alerta Hermes Zaneti Júnior (2014), não há um direito processual da Constituição e outro da lei.

O estado democrático de direito é sinônimo de estado constitucional, “em que os indivíduos e, em especial, os agentes estatais, estão sujeitos à lei, não como no velho paradigma positivista (sujeição à letra da lei), mas sujeitos à lei coerente com a Constituição da República” (CASARA, 2017, p. 19). Logo, a interpretação literal do dispositivo da lei do microssistema viola o princípio da isonomia e, por consequente, o próprio acesso à justiça. Segundo Greco (2020, p. 29):

A impossibilidade de o autor se fazer representar por preposto (art. 51, I, da Lei 9.099/95) constitui uma violação da garantia do acesso à Justiça, não só para pessoas enfermas, idosas, deficientes ou com dificuldades especiais, mas para qualquer pessoa que seja como normalmente é o autor, um litigante eventual, que tem de abandonar os seus afazeres para comparecer em Juízo.

Com isso, é de rigor que se compatibilize o disposto na Lei 9.099/95 com a Constituição, mormente quanto ao princípio da isonomia e, com isso, autorize que as ME e as EPP se façam representar por preposto quando estiverem promovendo ação naquele microssistema, mormente na realização de audiências. E não se necessita de maiores esforços hermenêuticos com o fim de assim entender. Bastaria, para isso, propor a técnica “interpretação conforme à Constituição” visando a interpretar os arts. 9º, § 4º e 51, I, da Lei 9.099/95.

Nesse sentido, o primeiro dispositivo passaria a ser interpretado, conforme a Constituição, da seguinte forma: “o réu [e o autor], sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto credenciado”.

Já o segundo dispositivo passaria a ser interpretado com o fim de se coadunar com a Constituição, da seguinte forma: “Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei: I − quando o autor [ou seu preposto] deixar de comparecer a qualquer das audiências do processo”.

Esse acréscimo interpretativo adviria da própria essência dos juizados especiais – e seus princípios de acesso à justiça, celeridade, simplicidade etc. – nos termos do art. 98, I, CF.

CONCLUSÃO

Viu-se que há um entendimento majoritário no sentido de que a microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente.

Com a possibilidade de as ME e EPP poderem propor ação perante os juizados especiais cíveis, essa interpretação literal proporciona um tratamento discriminatório quando essas pessoas estiverem no polo ativo da relação jurídica processual.

Procurou-se induzir uma provocação para a necessidade de uma interpretação adequada à Constituição. O direito fundamental de acesso à justiça não pode sofrer restrições, mormente em relação às microempresas e empresas de pequeno porte, que já possuem, em razão das suas particularidades, um tratamento diferenciado pela legislação brasileira e por tal razão amparado na isonomia, merecendo receber tratamento igualitário na relação processual.

Todavia, não há, aqui, a pretensão de apresentar respostas definitivas às indagações formuladas em seu corpo, ou construir única via interpretativa capaz de solucionar os problemas de que se ocupa. O que se almeja, em rigor, é que essas breves considerações sobre o tema possam suscitar futuros questionamentos e debates tendentes à sua consolidação no plano da ciência, com reflexos positivos para a resolução das contendas suscitadas no campo da aplicação do direito.

DIOGO NOLASCO PEREIRA

O preposto das ME e EPP diante do juizado especial/doutrina, 1

Juizado Especial, 1

RICARDO BERNARDES DIAS

O preposto das ME e EPP diante do juizado especial/doutrina, 1

FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: O microssistema dos juizados especiais e o tratamento dado à representação por preposto das ME e EPP: em busca de um tratamento isonômico2. Title: The microsystem of special courts and the treatment given to representation by a representative of ME’S and EPP’S: in search of an equal treatment. Autores: Ricardo Gueiros Bernardes Dias. Pós-Doutorado em Direito pela University of Houston, EUA. Doutor em Direito pela University of California (Hastings)/UGF. Mestre em Direito pela UGF/UERJ. Pós-graduado em Direito Comparado pela Université de Sorbonne (Paris-Panthéon). Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). Professor do Efetivo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Diogo Abineder Ferreira Nolasco Pereira. Mestre em

Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor da Rede Doctum de Ensino. Membro da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de Minas Gerais. Parecerista “ad hoc” da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPRO). Parecerista do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Resumo: A Lei 9.099/95, dos juizados especiais cíveis e criminais, dispõe em seu art. 9º, § 4º, que o réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto, mas o Enunciado 141 informa que a microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou sócio dirigente. Contudo, o direito fundamental de acesso à justiça não pode sofrer restrições, mormente em relação às microempresas e empresas de pequeno porte, que possuem tratamento diferenciado pela legislação brasileira. Essa interpretação literal é discriminatória quando essas pessoas estiverem no polo ativo da relação processual, havendo violação da isonomia. Palavras-chave: JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS; ME´S E EPP´S; PREPOSTO; ISONOMIA. Abstract: Law 9.099/95, on special civil and criminal courts, provides in its art. 9, § 4, that the defendant, being a legal entity or holder of an individual firm, may be represented by an agent, but Statement 141 informs that the microenterprise and the small business, when plaintiffs, must be represented, including in a hearing, by the individual entrepreneur or managing partner. However, the fundamental right of access to justice cannot be restricted, especially in relation to micro and small businesses, which are treated differently under Brazilian law. This literal interpretation is discriminatory when these people are in the active pole of the procedural relationship, with a violation of isonomy. Keywords: SPECIAL CIVIL COURTS; ME’S AND EPP’S; PROPOSAL; ISONOME. Data de recebimento: 10.11.2021. Data de aprovação: 29.11.2021 Fonte: Revista Bonijuris, vol. 34, n. 1 – #674 – Fev/Mar 2022. Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

REFERÊNCIAS

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