Angelo Gamba Prata de Carvalho PROFESSOR VOLUNTÁRIO DA FACULDADE DA UNB
Claudia Rosane Roesler PROFESSORA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNB
Apesar de o Supremo Tribunal Federal julgar massivamente ações criminais, ainda há cuidado argumentativo maior com as ações constitucionais
Quando Fedro alegou que Hipócrates dizia que a natureza somente poderia ser entendida como um todo, respondeu Sócrates que Hipócrates estava certo, porém não basta mencionar o seu nome, também é preciso examinar a correção dos seus argumentos. O argumento de autoridade pode ser estratégia interessante para a persuasão, na medida em que o orador se utiliza do prestígio de algum autor para avalizar a opinião que defende. Trata-se de artifício – ao menos à primeira vista – afastado da ideia de discurso racional (logos), passando a basear-se no apelo às características pessoais de autor notório, associando-as à pessoa do orador (ethos), segundo as clássicas categorias de Aristóteles.
Contudo, é essencial que se reconheça que o direito é prática autoritativa, já que, de um lado, se produz por meio de instituições e, de outro, é composto por normas contrafactualmente impositivas que condicionam em grande medida as premissas do discurso jurídico. O direito opera, dessa forma, baseado em instituições que funcionam sob um padrão centrado em argumentos de autoridade. Segundo Joseph Raz (2009), o direito não seria mero argumento de autoridade, mas sim a voz autoritativa de uma comunidade política, de maneira que a característica de argumento de autoridade é elemento intrínseco da prática jurídica. Não se trata, no entanto, de afirmar que as decisões judiciais devem ser prontamente aceitas tão somente em razão de sua autoridade, mas igualmente pelo fato de estarem expostas a controle público de linguagem que fornece critérios racionais de verificação da legitimidade dos discursos.
O argumento de autoridade no âmbito do direito não é necessariamente uma falácia, podendo decorrer da própria natureza contrafactual dos mandamentos jurídicos. Além disso, o direito é também legitimamente construído com base na doutrina jurídica, que reflete sobre as condições de aplicação das normas por intermédio da teorização mais abstrata delas. O discurso jurídico, portanto, é em grande medida articulado pelas opiniões de especialistas. Ainda assim, o emprego de argumentos de autoridade pode comprometer a higidez do discurso jurídico à medida que a doutrina é citada não por seu conteúdo e por sua utilidade na elaboração de uma tese, mas sim pelo simples fato de estar calcada na autoridade de determinados autores.
Diferentemente das decisões judiciais, que são executáveis, a autoridade da doutrina é construída e sedimentada ao longo dos anos, tendo em vista que a capacidade de persuasão dos argumentos é condicionada ao auditório a que são dirigidos. A consolidação da autoridade da doutrina é parte fundamental da cultura jurídica brasileira, ocupando posição de destaque na jurisprudência dos tribunais e influenciando a própria elaboração legislativa, razão pela qual é propício que se investigue a evolução ao longo da história do argumento de autoridade para moldar o direito brasileiro.
A pesquisa aqui empreendida foi realizada por meio de software desenvolvido especificamente para esse intuito, tendo por objetivo recolher da base de dados de acórdãos do stf as referências empregadas em cada uma das decisões proferidas por essa corte no período alcançado (1960-2016). Com isso, foi possível verificar quais os doutrinadores mais citados ao longo do período analisado e, assim, selecionar os cinco com o maior número de citações. Os autores selecionados – José Afonso da Silva, Júlio Mirabete, Guilherme Nucci, José Frederico Marques e Pontes de Miranda – são oriundos de ramos jurídicos distintos. Realizou-se outro corte analítico no intuito de agrupar autores de obras em direito penal e outros mais afetos – ao menos na jurisprudência do Supremo – ao direito constitucional.
1. O ARGUMENTO DE AUTORIDADE E O DIREITO
Caracterizado por sustentar determinada pretensão em razão do prestígio de certa personalidade externa ao discurso, o argumento de autoridade é comumente classificado entre as falácias argumentativas, de maneira a indicar a fraqueza da argumentação ou a debilidade de uma tese. O apelo à autoridade assim considerado, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 347-8), é uma das artimanhas mais criticadas no meio científico, sobretudo em razão de sua ampla utilização para a concessão de valor coercivo a assertivas, “como se as autoridades invocadas houvessem sido infalíveis”.
O argumento de autoridade – ou argumentum ad verecundiam –, segundo Walton (2012, p. 241), pretende produzir sentido inverso daquele buscado pelo ad hominem, por meio do qual o orador utiliza argumentos direcionados a pessoa específica para “minar ou destruir a credibilidade de alguém numa discussão crítica”. O ad verecundiam, assim, “recorre a alguém que seja especialmente confiável e reconhecido como fonte de esclarecimento”[1]. Nesse sentido, tal qual ocorre com o ad hominem, o apelo à autoridade tem por objetivo desviar o foco da disputa da linha de argumentação desenvolvida para a autoridade invocada, de maneira que a discussão deixa de se referir à própria matéria para voltar-se à legitimidade daquela autoridade para embasar (ou encerrar) a discussão[2].
Em tentativa de qualificar o argumento de autoridade segundo as práticas judiciárias, Erriat-Saint-Prix (1855, p. 47-8) o define segundo o seguinte modelo: “Tal proposição é verdadeira, pois é admitida por tal autor ou por tal tribunal”. Para esse autor, a fraqueza de tal modelo de argumentação se encontra justamente na facilidade de serem encontradas autoridades a favor ou contra a tese em questão, na medida em que “le plus habile jurisconsulte est faillible”.
Desse modo, importa notar que a autoridade trazida à discussão no argumentum ad verecundiam não é qualquer autoridade, mas uma autoridade especializada. Assim, é necessário que se admita que o argumento de autoridade não necessariamente será considerado irracional ou desarrazoado, uma vez que pode ser razoável admitir o parecer de profissional devidamente qualificado em determinada área (Walton, 2012, p. 243-4). É por essa razão que, tendo em vista a possibilidade de se encontrar outros sujeitos de maior prestígio aptos a refutar determinado apelo à autoridade, o objetivo da argumentação passa a ser o descrédito da opinião especializada trazida à discussão[3] ou, ainda, a tentativa de superação do primeiro apelo por intermédio da citação de autoridade ainda mais prestigiada.
O mero apelo à autoridade não é, por si só, falacioso, podendo ser legítimo, por exemplo, quando “duas pessoas raciocinam juntas numa discussão crítica” ou, ainda, quando o recurso à autoridade seja considerado uma forma de complementar argumentação mais complexa (Walton, 2012, p. 243-4). É o que defendem Eemeren e Grootendorst (1992, p. 154), para quem o argumento se tornará falacioso apenas quando o orador pretender que uma audiência aceite seu ponto de vista exclusivamente em razão da autoridade que deriva de conhecimento especializado ou de integridade pessoal. Trata-se, assim, de mecanismo de construção da pessoa do orador, uma vez que, ainda segundo Eemeren e Grootendorst, a efetividade do argumentum ad verecundiam deriva do mecanismo psicológico que faz que, quanto maior seja a confiança do auditório no orador, mais aceitável ou persuasiva será sua argumentação[4].
O argumento de autoridade, portanto, além de ser campo-dependente[5] – aqui entendido por campo não apenas o direito, mas também cada um dos ramos do direito[6] –, depende em grande medida do auditório ao qual a argumentação se direciona (Kötz, 1988, p. 661). Sustenta-se tal posição por se estar partindo do pressuposto retórico de que “é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve”, sendo a argumentação sempre direcionada à persuasão, consoante Perelman e Olberchts-Tyteca (2014, p. 31)[7], ou seja, ao convencimento de uma audiência específica, a qual será mais ou menos suscetível a uma estratégia argumentativa ou outra. Nesse sentido, sustenta Perelman que o orador adaptará seu discurso ao auditório ao qual se dirige, adotando as técnicas adequadas à persuasão daquele auditório particular (Perelman; Olbrechts-tyteca, 2014, p. 1-34). Observe-se, no entanto, que determinar a racionalidade do argumento de autoridade, se aceitos os pressupostos perelmanianos, requer especificar também as condições nas quais se invoca o auditório universal. Essa noção, altamente utilizada, mas igualmente controversa, tem implicações profundas quando se pensa no problema objeto deste artigo, articulando-o com as situações nas quais, como veremos, é adequadamente fundamentada a invocação da autoridade doutrinária[8].
Se aceitamos que o argumento de autoridade pode ser racional, podemos afirmar com alguma certeza que tal modalidade de argumento tende a ser corriqueira nas discussões jurídicas. Sobretudo no direito, de modo algum se pode negar a relevância desses argumentos, na medida em que a força do precedente, a vinculação dos preceitos legais e – como se pretende demonstrar neste estudo – os preceitos doutrinários desempenham papel essencial no processo de construção do direito (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2014, p. 348-9).
É essencial que se reconheça que o direito, conforme assinalam Atienza e Vale (2012), é uma prática de autoridade, seja em razão da forma institucionalizada de sua produção, seja pela força impositiva de suas normas, que condicionam em larga medida as premissas do discurso jurídico. Por essa razão, no direito “os argumentos baseados em autoridade não somente são usados com profusão, mas também se considera legítimo fazê-lo” (Atienza; Vale, 2012, p. 147).
Como bem coloca José Rodrigo Rodriguez (2013, p. 67), a lei não é a única fonte da autoridade do direito, podendo também funcionar como autoridade os casos julgados, os princípios e a doutrina. O direito opera, dessa forma, com base em instituições que funcionam sob um padrão centrado em argumentos de autoridade. Isso não significa, contudo, que as decisões baseadas na autoridade sejam autoritárias e unilaterais, já que podem ser racionais em razão da abertura do debate às diversas opiniões acerca de determinado tema.
A autoridade do direito, apesar de se mostrar imperativa no âmbito de uma ordem judicial, não é absoluta no momento da fundamentação de decisões judiciais, uma vez que as razões de decidir dos tribunais são construídas discursivamente, podendo haver razões a favor ou contra o reconhecimento de determinada fonte como vinculante no caso concreto. É por essa razão que Frederick Schauer (2008, p. 1.940-2) distingue autoridade vinculante (binding authority) de autoridade persuasiva (persuasive authority), sendo a primeira expressa obrigação de reconhecimento de determinada proposição – a exemplo de precedente vinculante de corte superior –, enquanto a segunda se refere à autoridade que, embora não obrigatória, pode servir à articulação de razões de decidir que, então, se tornarão obrigatórias.
No âmbito sobretudo das autoridades persuasivas, tendo em vista o caráter relacional da autoridade, Manuel Atienza e André Rufino Vale (2012, p. 149-50) traçam outra distinção: a que se estabelece entre autoridades teóricas e autoridades práticas. A autoridade é teórica quando a relação entre o sujeito que argumenta e a autoridade versar sobre crenças, ao passo que é prática quando se referir a ações ou decisões. Além disso, pontuam Atienza e Vale que é necessário admitir certa gradação da autoridade, que pode ser determinante para configurar crenças ou guiar o comportamento de outrem ou simplesmente contribuir para tal finalidade.
A autoridade teórica tende a ser mais simples, pois basta que se demonstre o equívoco de certa crença – por exemplo, na correção da opinião de determinado autor – para que tal crença deixe de existir. De outro lado, a autoridade prática suscita controvérsia sobre a legitimidade da autoridade em questão, isto é, se determinada decisão, norma ou afirmação doutrinária deve e merece ser seguida (Atienza; Vale, 2012, p. 150-3). Veja-se, nesse sentido, que a própria invocação de autoridades doutrinárias pode ser, como bem mostra Shecaira (2017, p. 312-6), uma forma de argumentação tanto teórica quanto prática, o que certamente não facilita a análise de quais são os fundamentos legítimos para a sua invocação.
Com isso, pretendeu-se demonstrar que, muito embora o argumento de autoridade possa ser reconhecido como falácia, tal técnica argumentativa pode possuir grande valor no âmbito jurídico, posto que instâncias decisórias públicas dependem fundamentalmente da posição normativa das instituições e, como se verá, da opinião de especialistas (Willard, 1990). Não obstante, o discurso jurídico, assim entendido como discurso oficial submetido a controle público de legitimidade a ser verificada mediante a análise da fundamentação das decisões, deverá seguir parâmetros de racionalidade que justifiquem o resultado obtido[9]. Por conseguinte, o emprego do argumento de autoridade por decisões judiciais deve ser justificado e estar concatenado com as razões de decidir.
Na seção seguinte serão apresentados os métodos aplicados e dados obtidos a respeito do uso do argumento de autoridade pelo Supremo Tribunal Federal, para que, posteriormente, possam ser analisados e contextualizados com as premissas ora apresentadas.
2. O USO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE NO STF (1960-2016)
Partindo-se do pressuposto de que a fundamentação das decisões judiciais ao longo dos anos revela noções de direito e da construção do direito essenciais à compreensão da cultura jurídica nacional, segundo Friedman (1981), buscou-se verificar, com base em dados obtidos de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal desde 1960, qual o papel desempenhado pelos autores nas decisões desse tribunal e de que maneira tais personagens são desenvolvidos e têm sua autoridade sedimentada ao longo dos anos. Com isso, pretende-se observar a forma pela qual o emprego de determinados argumentos de autoridade se modifica a depender da audiência espacial ou temporal.
Trata-se, na verdade, de tentativa de identificação de padrões retóricos que indiquem não apenas o que se considera objetivamente correto, mas também quais argumentos são tidos como fortes o suficiente – e conseguem assim se manter – para que sejam aceitos pela comunidade jurídica a que se destinam. Vale notar que, para além do estilo próprio de cada juiz, o comportamento do julgador se modifica em grande medida em razão de sua audiência, que será tanto composta por seus colegas quanto por outros grupos sociais e profissionais, dentre os quais a comunidade jurídica que definirá a legitimidade ou não da citação utilizada (Baum, 2006)[10].
A averiguação das práticas dos tribunais indica que argumentos doutrinários desempenham relevante papel na fundamentação de decisões judiciais, razão pela qual se mostra pertinente o estudo não apenas de quais autores são utilizados e se correspondem à doutrina dominante, mas também de que maneira suas teorias são empregadas para legitimar determinada linha argumentativa ou mesmo para corroborar disposições legais ou orientações jurisprudenciais[11].
Nesse intuito, são identificadas diversas pesquisas realizadas com o objetivo de investigar a relação entre juízes e acadêmicos, isto é, de autores de doutrina jurídica. Pode-se, nesse sentido, mencionar os trabalhos de Shapiro (2000), que, ao compilar os autores e artigos científicos mais citados pela suprema corte norte-americana, procura demonstrar padrões de validação do discurso acadêmico pela prática jurídica e, com isso, mensurar o impacto de determinado autor ou texto[12]. Em sentido semelhante, Merritt e Putnam já chegaram a verificar que, nas cortes norte-americanas, existe grande disparidade entre os autores citados em decisões judiciais e artigos acadêmicos, muito embora a frequência de citações nessas duas searas seja igualmente grande (Merritt; Putnam, 1996).
No Brasil, destaca-se o levantamento quantitativo realizado por Lorenzetto e Kenicke (2013) nos casos de controle concentrado de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal entre 1988 e 2012, alcançando as decisões de procedência ou procedência parcial. Neste estudo, a vinculação aos autores de direito constitucional é natural, porém, como se verá, os resultados daquele estudo se aproximam em alguma medida dos obtidos neste. Na pesquisa de Lorenzetto e Kenicke, José Afonso da Silva igualmente foi o autor mais citado, mas foi seguido por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Ribeiro Bastos, Gilmar Ferreira Mendes e Pinto Ferreira na lista de cinco autores com maior número de citações. Além de José Afonso da Silva, os resultados do estudo de Lorenzetto e Kenicke identificaram a relevância de Pontes de Miranda (em décimo lugar naquele estudo), que também integra o recorte aqui adotado, como se verá. As discrepâncias entre este estudo e o dos autores mencionados se dão em razão da maior abertura do espectro de análise aqui adotado, que alcança todas as ações julgadas pelo Supremo, de sorte que, especialmente em razão do grande volume de casos criminais julgados pela citada corte e das competências do stf no período anterior à Constituição de 1988, não haveria como ficar mantida a lista de constitucionalistas traçada pelos autores.
Nos itens a seguir serão explanados os detalhes da metodologia de coleta e análise de dados empregada no presente estudo, com vistas a melhor aclarar as conclusões a serem apresentadas em seguida.
2.1. Metodologia
Este trabalho requereu diversas fases de coleta e classificação dos dados, contando com o auxílio de software desenvolvido especificamente para tanto (Althoff, 2015). A pesquisa foi realizada em três etapas: (i) a coleta dos dados do stf, com vistas a identificar os autores mais citados; (ii) a análise das citações desses autores pelo stf ao longo do período estudado (1960 a 2016); e (iii) a criação de indicadores referentes aos tipos de argumento utilizados e a comparação entre os autores, considerando também o ramo do direito de especialidade dos autores em questão.
O Supremo Tribunal Federal conta, em seu website, com acórdãos em inteiro teor em formato digital de julgados proferidos desde o dia 6 de julho de 1950. Todavia, tendo em vista que o software de coleta de dados analisaria tão somente o “espelho do acórdão”[13], isto é, o conjunto de informações exibido como resultado de busca na ferramenta de pesquisa da referida corte, foi necessário testar a acurácia dos dados contidos nos “espelhos”.
Por esse motivo, foram sucessivamente realizados testes com os acórdãos de cada um dos anos com dados disponíveis, recolhendo-se 50 exemplares de cada ano para verificar se as informações constantes dos espelhos correspondem ao que se lê no inteiro teor dos acórdãos. Adotaram-se para análise os acórdãos – tanto das turmas quanto do tribunal pleno – compreendidos entre os dias 1º de janeiro de 1960 e 31 de dezembro de 2016, período em que não houve incongruências entre os dados do espelho e do inteiro teor, sendo então adotado como universo de análise. Note-se, ainda, que a confiabilidade dos metadados dos acórdãos do stf consiste em verdadeiro desafio para pesquisas que se dediquem a estudar a jurisprudência desse tribunal em perspectiva histórica, tendo em vista a dificuldade de se obter parâmetros confiáveis de tabulação das fontes utilizadas pelos julgados em acórdãos mais antigos[14].
Superadas as desconfianças quanto à idoneidade dos dados, procedeu-se à coleta das referências bibliográficas de todos os acórdãos em inteiro teor disponíveis no websitedo Supremo, do início de 1960 até o fim de 2016, por intermédio do software já citado. Os resultados entregues pelo software foram, então, sistematizados de maneira a expor quantas vezes cada autor foi citado em cada um dos anos estudados. A referida sistematização se deu de maneira manual, baseada na classificação das informações consolidadas pelo softwareem arquivo de texto de considerável extensão no qual foram colacionadas as referências do tópico “doutrina” constante de cada espelho de acórdão proferido no período estudado. Dessa maneira, o trabalho manual de classificação e sistematização realizado pelos autores do presente trabalho serviu tanto para construir a tabela de resultados que identificou os autores utilizados pelo Supremo quanto para corrigir determinadas dificuldades ínsitas ao próprio sistema de pesquisa do stf e à tabulação dos espelhos. Assim, eventuais dificuldades referentes à forma de redação das referências, à grafia e às abreviaturas de nomes de autores ou mesmo à inserção de informações que não interessam ao presente trabalho (por exemplo, a menção a precedentes judiciais no tópico de “doutrina”) foram também endereçadas pela classificação manual. Essa etapa da pesquisa demonstrou que foram citados, no total, 2.898 autores, ao longo dos 57 anos analisados.
Diante da expressiva quantidade de autores citados, elegeram-se para análise de argumentos os cinco autores mais citados no universo de análise, a saber: (i) José Afonso da Silva (665 citações); (ii) Júlio Fabbrini Mirabete (643 citações); (iii) José Frederico Marques (627 citações); (iv) Guilherme de Souza Nucci (624 citações); e (v) Francisco de Cavalcanti Pontes de Miranda (616 citações).
Uma vez identificados os autores mais citados, foi possível passar à segunda fase da pesquisa, referente à análise das citações aos autores. Para tanto, foram elaborados indicadores que correspondem ao tipo de argumento de autoridade adotado, obtendo-se inspiração do modelo que Isaac Reis denominou “Análise Empírico-Retórica do Discurso” (Reis, 2014, p. 73-93). Com base nos estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014) e Walton (2012), os indicadores foram divididos em três grupos: o primeiro referente ao apelo racional à autoridade; o segundo referente ao “argumento de autoridade” propriamente dito, considerado irracional ou falacioso[15]; e o terceiro contendo indicadores de controle. Os indicadores foram denominados com letras de “A” a “K”, sendo curial explicitar o significado de cada um que, embora muitas vezes semelhantes nos casos concretos, apresentam distinções conceituais significativas.
O primeiro grupo (apelo “racional”) é composto pelos seguintes indicadores: (A) acolhimento de definição, conceito, categorização ou tese elaborada pelo autor; (B) contraposição de argumentos retirados de autores diversos, promovendo diálogo construtivo com suas ideias; (C) adoção da tese de determinado autor como fator determinante para o esclarecimento de determinada controvérsia; (D) diálogo entre doutrina, jurisprudência e legislação, demonstrando a influência de determinado autor sobre as demais fontes do direito.
O segundo grupo (apelo “irracional”) é composto pelos indicadores: (E) associação de argumento desenvolvido no voto à opinião de determinado autor, de maneira a reforçar a tese sustentada; (F) emprego do autor como argumento baseado na história, demonstrando evolução ou simplesmente mudança de entendimento; (G) exposição da opinião da doutrina de forma desconectada do restante da argumentação; (H) citação de vários autores em conjunto, externando a opinião abstrata da “doutrina”; (I) declaração explícita da utilização de determinado autor em razão de sua autoridade.
O terceiro grupo é composto de indicadores de controle do universo de citações estudado, composto por: (J) citação pelo acórdão recorrido ou pelo parecer do Ministério Público, de modo a não estar a citação empregada diretamente em argumento do próprio stf; (K) acórdão extraviado, geralmente com problemas na leitura do acórdão.
A subsunção de um dado “argumento de autoridade” aos grupos concernentes ao “apelo racional” e ao “apelo irracional” se deu mediante a identificação ou não da estrutura de argumento de autoridade indicada por Walton (2012, p. 271)[16] na argumentação constante dos acórdãos analisados. Exemplificativamente, a subsunção de determinado argumento ao indicador E, de apelo irracional, se dá mediante a identificação de estrutura indicada por Walton em argumento no qual o Supremo Tribunal Federal sustenta que “o entendimento adotado no presente caso deve ser este, conforme se depreende das lições de determinado autor”, sem grandes incursões substanciais na argumentação do autor em questão. De outro lado, o “apelo racional à autoridade” em sua manifestação mais comum (indicador A) é identificado quando determinado voto acolher e aplicar certa definição doutrinária, como é o caso da classificação de determinada disposição constitucional como norma de eficácia limitada, em aplicação da compreensão clássica de José Afonso da Silva. Tal expediente foi realizado em cada um dos acórdãos analisados, assim subsumindo os argumentos de autoridade aos indicadores elencados.
Identificados e categorizados os indicadores, passou-se à terceira fase da pesquisa, na qual se buscou comparar as formas pelas quais se articularam os argumentos de autoridade. A disparidade entre o número de citações verificado nos acórdãos mais antigos – caracterizados por conterem poucas citações – e aquele percebido nos mais recentes – com número acentuado de citações – exigiu a aplicação de média ponderada sobre as quantidades de citações. Os pesos (p) adotados no cálculo da média foram definidos pela multiplicativa inversa de logaritmo na base 2 do número de citações de cada ano analisado (na), de modo que as menções realizadas em anos com menor ocorrência de citações terão maior peso. A fórmula empregada pode ser representada graficamente da seguinte maneira:
Em seguida, construíram-se tabelas nas quais, para cada autor, o número de citações classificadas sob determinado indicador em um dado ano foi multiplicado pelo peso obtido para aquele ano. Com esses dados consolidados, aplicou-se média aritmética que fornece a síntese das citações de cada autor em cada indicador, permitindo que sejam comparados os cinco doutrinadores escolhidos, como se mostrará nos resultados expostos no próximo item.
2.2. Análise dos dados recolhidos
2.2.1. O número de citações
A análise dos argumentos articulados pelo Supremo Tribunal Feral ao longo das décadas demonstra a grande disparidade entre acórdãos antigos e recentes no que diz respeito ao número de citações. Os julgados antigos apresentam estrutura mais enxuta, em geral com menor número de páginas e menos menções a autores. O crescimento do número de citações pode ser percebido do gráfico que sintetiza as menções a Pontes de Miranda, que somente não foi citado em seis dos anos estudados.
Figura 1: Citações a Pontes de Miranda no STF sem indicadores (citações versus ano)
Fonte: Carvalho e Roesler
Conforme já se sinalizou, aponta Friedman (1981) que o comprimento das decisões e a forma de emprego das citações estão relacionados à “cultura jurídica”na qual se insere determinada corte, de maneira que certos estilos de decisão podem pertencer a um período temporal específico. Atributos como esses são fortemente influenciados pela mudança social, de maneira que um contexto no qual se valoriza o acesso à justiça e a obtenção de prestações jurisdicionais equânimes e efetivas passa a impor parâmetros acentuados de controle público da linguagem dos tribunais, sobretudo nos chamados hard cases, quando posturas formalistas e demasiadamente sintéticas não são capazes de endereçar adequadamente os problemas apresentados.
Além disso, não se pode esquecer de que o baixo número de citações em tempos mais antigos pode ser causado por circunstâncias muito menos simples: a dificuldade de manuseamento, se não de acesso ao conhecimento jurídico, em razão de o mercado editorial ter crescido paulatinamente, agregando características mais dinâmicas no desenrolar do progresso tecnológico. Por fim, como se comentará a seguir, a confiabilidade dos metadados dos espelhos de acórdãos disponibilizados no sistema de buscas do Supremo pode ser questionada sobretudo em acórdãos mais antigos, tendo em vista a construção paulatina de uma cultura de parametrização da jurisprudência do stf segundo as fontes consultadas pelos julgadores.
2.2.2. Os indicadores predominantes entre os cinco autores escolhidos
Para além das alterações na quantidade de citações, a análise da série histórica permite a identificação de oscilações qualitativas no modo como o argumento de autoridade participa das decisões do Supremo. Dos dados coletados, de modo absoluto, percebeu-se o predomínio de três formas de argumentos de autoridade: (i) a adoção de teses de autores (A); (ii) o fortalecimento de argumento do julgador pela citação do autor (E); e (iii) a citação abstrata à “doutrina” (H), como se depreende da Tabela 1.
Tabela 1: Relação geral (autores versus indicadores)
_MIRABETE | J. AFONSO | PONTES | MARQUES | NUCCI | |
A | 160,806 | 418,460 | 166,870 | 345,720 | 344,178 |
B | 39,741 | 19,908 | 15,089 | 22,351 | 37,906 |
C | 4,589 | 13,487 | 12,479 | 3,255 | 12,063 |
D | 38,007 | 19,066 | 42,643 | 17,146 | 109,379 |
E | 247,038 | 262,138 | 176,262 | 238,452 | 389,650 |
F | 0,000 | 1,508 | 135,655 | 1,529 | 1,506 |
G | 1,563 | 0,000 | 38,473 | 0,000 | 7,517 |
H | 369,811 | 230,771 | 161,628 | 339,172 | 179,563 |
I | 0,000 | 4,428 | 1,590 | 0,000 | 1,540 |
J | 106,031 | 72,622 | 71,309 | 56,313 | 7,724 |
K | 0,000 | 1,600 | 6,365 | 0,000 | 16,640 |
Fonte: Carvalho e Roesler
A tabela 1 demonstra, em síntese, que a frequência de uma ou outra modalidade de argumento de autoridade é particular às características de cada um dos autores. Acrescente-se que, ao passo que Pontes de Miranda e José Frederico Marques já eram reconhecidos pela jurisprudência do Supremo antes de 1960, José Afonso da Silva aparece na década de 1960, Mirabete na década de 1980 e Nucci apenas em 2003.
Apesar dessas diferenças, observe-se que Nucci alcança um certo equilíbrio com os demais autores de seu ramo, sendo citado em intensidades semelhantes na modalidade racional do argumento de autoridade (A) e na modalidade falaciosa (E). O mesmo ocorre com Marques e Mirabete, que se afastam em maior medida de Nucci apenas nas citações abstratas à “doutrina”, espécie impessoal de argumento de autoridade que congrega a opinião de diversos autores de renome.
Dessa observação se pode concluir que autores mais antigos, com autoridade mais sedimentada, tendem a ser identificados com a “mais abalizada doutrina”, sendo suas teses por vezes niveladas às de outros para que o efeito do argumento de autoridade seja acentuado. Afinal, mais difícil do que combater o argumento sustentado por um “douto” é rebater argumentos de um grande número de sábios, potencializando-se, assim, o argumento de autoridade[17].
Tal constatação vai ao encontro da percepção de José Rodrigo Rodriguez (2013, p. 62), ao afirmar que a argumentação por autoridade não está necessariamente ligada ao conteúdo da citação, mas sim à força do argumento decorrente da citação em razão da influência das personalidades ali relacionadas, de modo que, “de acordo com esta forma de pensar, uma posição é tanto mais correta quanto mais pessoas concordarem com ela”.
Como já se comentou, decidiu-se pela divisão dos autores em dois grupos temáticos, de maneira a evitar distorções advindas do grande volume de ações apreciadas pelo Supremo em áreas como o direito penal. Nesse sentido, o mesmo fenômeno pode ser observado quando se isolam os autores provenientes do direito penal dos demais, analisando-se tão somente as ações que versam sobre essa matéria (habeas corpus, recurso em habeas corpus, inquérito criminal, ação penal originária, revisão criminal).
Tabela 2: Relação de autores de direito penal (autores versus indicadores)
_MIRABETE | MARQUES | NUCCI | |
A | 161,035 | 201,068 | 343,696 |
B | 35,372 | 10,891 | 26,357 |
C | 3,059 | 1,566 | 14,545 |
D | 51,022 | 33,999 | 175,455 |
E | 241,014 | 89,714 | 314,804 |
F | 0,000 | 1,475 | 1,453 |
G | 1,563 | 1,456 | 17,447 |
H | 311,976 | 106,603 | 164,477 |
I | 0,000 | 0,000 | 1,486 |
J | 123,337 | 53,229 | 24,904 |
K | 0,000 | 0,000 | 18,990 |
Fonte: Carvalho e Roesler
O isolamento dos autores de direito penal, portanto, confirma a hipótese verificada na relação geral: a existência de certo equilíbrio entre a adoção de teses e o apelo irracional à autoridade, sendo um desses autores (Mirabete) mais comumente identificado com a opinião geral da doutrina e outro (Nucci) tendo suas teses plasmadas aos argumentos do Supremo. Importa notar, nesse sentido, a tendência à adoção das teses do autor mais atual por seu conteúdo e ao recurso à autoridade de um dos autores mais antigos como forma de fortalecimento retórico do argumento. Dos dados recolhidos se observa que, nas décadas de 1980 e 1990, Mirabete era citado de forma semelhante à empregada com Nucci. Considerando-se a predominância dos indicadores “A”, “E” e “H”, as representações gráficas dos dados analisados mostrarão apenas esses três indicadores, com vistas a facilitar a visualização dos dados:
Figura 2: Citações a Mirabete no STF (citações versus ano)
Fonte: Carvalho e Roesler
Figura 3: Citações a Nucci no STF (citações versus ano)
Fonte: Carvalho e Roesler
Fenômeno semelhante se observa com a figura de Pontes de Miranda, inclusive se analisado em conjunto com José Afonso da Silva. Os dados de Pontes demonstram variações à medida que o autor estabelece sua posição de autoridade (ver figura 1), alterando-se inclusive para que o autor passe a ser utilizado como argumento baseado na história (indicador F) através da citação a seus comentários às constituições brasileiras. Por outro lado, José Afonso da Silva é predominantemente citado em razão de suas teses e conceitos, costumeiramente acolhidos pelo Supremo, especialmente no que diz respeito à sua teoria sobre a efetividade das normas constitucionais.
Tabela 3: Pontes de Miranda e José Afonso da Silva nas ações constitucionais
_PONTES | J. AFONSO | |
A | 135,007 | 394,049 |
B | 45,264 | 16,991 |
C | 12,386 | 10,418 |
D | 112,999 | 188,475 |
E | 3,160 | 1,508 |
F | 65,782 | 5,825 |
G | 32,117 | 5,825 |
H | 12,150 | 160,607 |
I | 18,279 | 2,949 |
J | 92,603 | 97,104 |
K | 0,000 | 1,600 |
Fonte: Carvalho e Roesler
A tabela 3 analisou tão somente as ações constitucionais (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental, recurso extraordinário, agravo em recurso extraordinário, mandado de segurança, recurso em mandado de segurança, mandado de injunção), no âmbito das quais os dois autores tiveram número de citações mais expressivo, destacando-se nesse sentido os recursos extraordinários.
Figura 4: Citações a José Afonso da Silva no STF (citações versus ano)
Fonte: Carvalho e Roesler
Figura 5: Citações a Pontes de Miranda no STF por indicadores (citações versus ano)
Fonte: Carvalho e Roesler
A análise das citações dos autores de direito constitucional trouxe achado interessante: argumentos de autoridade em sentido irracional (indicador E), abundantes entre os autores de direito penal, não se mostraram tão presentes, dando lugar a um número significativo de argumentos de autoridade em sentido racional, especialmente para o acolhimento de teses dos autores (indicador A). É o que se verifica, por exemplo, da interpretação de normas constitucionais com base em conceitos fornecidos por Pontes de Miranda em seus comentários às constituições de 1946 e 1967, bem como da incorporação da tradicional classificação de José Afonso da Silva das normas constitucionais segundo sua efetividade.
Pontes de Miranda produziu obra vasta, que abarca diversos ramos do direito, tanto no direito público – inclusive no direito penal, destacando-se seu História e Prática do Habeas Corpus – quanto no direito privado, seja no direito processual, seja no direito material, o que justifica maior dispersão em seus resultados. De outro lado, José Afonso da Silva é citado e conhecido por seu prestígio no âmbito específico do direito constitucional, tanto por seus comentários à Constituição de 1988 quanto por seu Curso de Direito Constitucional Positivo. Nas citações a esse autor verifica-se enfática predominância de argumentos identificados pelo indicador A, o que se interpreta como evidência de maior preocupação dos magistrados com a afirmação do papel do stf como corte constitucional.
Dessa maneira, confirma-se a noção segundo a qual o argumento de autoridade é elemento inestimável para a prática jurídica à medida que serve para construir e validar teoricamente a operação das instituições. A legitimação do discurso jurídico por intermédio da opinião de sujeitos especializados não apenas aproxima as cortes da academia, mas principalmente promove a convergência e a articulação das fontes do direito para a constante reflexão sobre o sentido das normas e das instituições jurídicas. Contudo, muito embora o controle concentrado de constitucionalidade represente parcela expressiva dos julgados do Supremo, a maior parte do volume de decisões do stf não diz respeito a essa seara, mas sim ao direito criminal, como ficou evidenciado inclusive nos resultados desta pesquisa. Assim, por mais que os casos criminais ocupem parte substancial das pautas desse tribunal, o emprego de argumentos de constitucionalistas – como José Afonso da Silva – serve em grande medida à reafirmação desse papel do stf.
Apesar desse destaque sobre os autores de direito constitucional, os dados analisados confirmaram a hipótese inicial do presente trabalho, segundo a qual seriam predominantes os argumentos de autoridade no sentido irracional, empregados como obiter dicta sobretudo no que diz respeito às citações de autores mais antigos como Pontes de Miranda e Júlio Mirabete. Soma-se a essa verificação a grande frequência de citações à “doutrina” de maneira geral, elencando-se autores, porém sem qualquer exposição de suas ideias, de modo a citá-los tão somente em razão de seu apoio a determinado ponto de vista.
CONCLUSÃO
Com base nos achados da presente pesquisa pode-se concluir pela proeminência da figura do jurista – ou, melhor dizendo, do “grande jurista” – na cultura jurídica brasileira, inquinando o discurso jurídico de forte traço de irracionalidade e subjetivismo, o que, embora se posicione como obiter dictum, constitui barreira à refutação dos argumentos colocados que refoge ao mero ônus argumentativo decorrente dos fundamentos apresentados.
Além disso, como já se antecipou, pode-se perceber que é característica fundamental da atuação do stf a grande quantidade de casos de direito penal, razão pela qual se destacam em substancial medida os autores desse ramo do direito. Tanto é assim que é necessário analisar em separado esses autores para que se identifiquem as características próprias dos argumentos em que são empregados.
No que toca às ações constitucionais, notou-se padrão mais elevado de racionalidade, sobretudo em comparação com as citações em direito penal. Apesar de o Supremo Tribunal Federal julgar massivamente ações criminais, ainda há cuidado argumentativo maior com as ações constitucionais, tendo em vista o papel de corte constitucional desempenhado por esse tribunal.
Por fim, conclui-se que a articulação de argumentos de ethos como os argumentos de autoridade podem desempenhar papel até mais determinante do que os de logos para a condução à conclusão de determinado voto, o que evidencia não somente a natureza retórica do discurso jurídico, mas o fato de as opiniões do stf serem também destinadas a auditórios a serem persuadidos de formas diversas, dependentes da época e do estado da arte da teoria jurídica.
Nesse sentido, os dados coletados mostram claramente a
estabilização de certas autoridades e a aparição de outras ao longo do período
analisado, de acordo com processos de persuasão que merecem ser melhor
investigados. Possivelmente determinada pela facilidade de acesso às obras,
pela reiteração de certos usos induzida pela formação profissional oferecida
aos julgadores e por outros mecanismos político-sociais de construção de
referências comuns, a estabilização desses autores como autoridades a serem
invocadas, ainda que não de modo racional, requer outras reflexões amparadas em
pesquisas empíricas subsequentes. Compreender melhor esse processo auxiliaria, ademais,
a enxergar as conformações específicas da prática jurídica brasileira e
eventualmente discuti-la à luz de empreendimentos teóricos que buscam
estabelecer padrões de racionalidade, como as teorias jurídicas contemporâneas.
ANGELO PRATA DE CARVALHO
O argumento de autoridade no STF/doutrina, 2
CLAUDIA ROSANE ROESLER
O argumento de autoridade no STF/doutrina, 2
O argumento de
autoridade no STF/doutrina, 2
// Revista Bonijuris FICHA TÉCNICA Título original: O argumento de autoridade no Supremo Tribunal Federal: uma análise retórica em perspectiva histórica[18]. Title: The argument from authority on the Brazilian Supreme Court: a rhetorical analysis on a historical perspective. Autores: Angelo Gamba Prata de Carvalho. Advogado. Professor voluntário da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB. E-mail: angelogpc@gmail.com. Claudia Rosane Roesler. Professora da Faculdade de Direito da UnB. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo – usp. E-mail: claudiaroesler@hotmail.com. Resumo: O argumento de autoridade tem sido objeto de análise de diversos representantes da teoria da argumentação jurídica. É essencial que se reconheça que o direito é uma prática de autoridade, seja em razão da forma institucionalizada de sua produção, seja pela força impositiva de suas normas, que condicionam em larga medida as premissas do discurso jurídico. Por essa razão, no direito “os argumentos baseados em autoridade não somente são usados com profusão, mas também se considera legítimo fazê-lo”. Apesar de o stf julgar massivamente ações criminais, ainda há cuidado argumentativo maior com as ações constitucionais, tendo em vista o papel de corte constitucional desempenhado. Abstract: The authority argument has been the subject of analysis by several representatives of the theory of legal argumentation. It is essential to recognize that the law is a practice of authority, either because of the institutionalized form of its production, or because of the imposing force of its rules, which condition it to a large extent as premises of the legal discourse. For this reason, in law “authority-based grounds are not only used profusely, but it is also considered legitimate to do so. Although the Federal Supreme Court judges criminal actions on a massive scale, there is still greater argumentative care with constitutional actions, in view of the role of constitutional court played. Data de recebimento: 08.09.2020. Data de aprovação: 02.12.2020. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 1 – #668 – fev./mar. 2021, págs …, Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, pr, Brasil, issn 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br). |
REFERÊNCIAS
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[1] A semelhança entre o ad hominem e o ad verecundiam é assim esclarecida por Walton (2012, p. 241): “Sob certos aspectos, no entanto, esses dois tipos de argumentos são semelhantes. Os dois recorrem a fontes pessoais de opinião, concentrando-se na posição interna ou na credibilidade de uma pessoa como fonte confiável de conhecimento. A esses dois tipos de argumentação pode-se contrapor o apelo ao conhecimento externo ou objetivo, que vem de evidências científicas como as observações experimentais: é um tipo de conhecimento que vem da natureza e não de uma fonte pessoal”.
[2] Segundo Walton (2012, p. 271), o argumento de autoridade pode ser representado da seguinte maneira:
“E é um especialista na área D.
E declara que A é reconhecidamente verdadeiro
A está contido em D
Logo, A pode (plausivelmente) ser considerado verdadeiro”.
[3] É por esse motivo que a refutação por excelência para o argumento de autoridade é o próprio argumentum ad hominem. Ver, nesse sentido: MIZRAHI, 2010.
[4] Pontuam os autores: “La efectividad de un argumentum ad verecundiam deriva del mecanismo psicológíco que hace que mientras más confianza tenga la audiencia en una persona, más probable es que acepte lo que esa persona dice. En casos extremos, un ethos particularmente fuerte puede hacer incluso que la argumentación a favor de un punto de vista se vuelva superflua. No hay ninguna necesidad de argumentar, puesto que la audiencia confía plenamente en la palavra del hablante y acepta cualquier cosa que este diga o proponga” (EEMEREN; GROOTENDORST, 1992, p. 154). Com isso, tem-se que o argumento de autoridade opera, segundo a classificação aristotélica, no âmbito do ethos, isto é, dentre as provas de persuasão que residem no caráter moral do orador. Para Aristóteles: “Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exacto e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como aliás alguns autores desta arte propõem, mas quase se poderia dizer que o carácter é o principal meio de persuasão” (ARISTÓTELES, 2005, p. 96).
[5] O conceito de campo-dependência é esclarecido por Stephen Toulmin (2006, p. 20-1), sendo campo-dependentes aqueles argumentos cujas formas e méritos variam conforme o campo sobre o qual versam. Segundo Toulmin: “Diz-se que dois argumentos pertencem ao mesmo campo quando os dados e as conclusões em cada um dos dois argumentos são, respectivamente, do mesmo tipo lógico; diz-se que eles vêm de campos diferentes quando o suporte ou as conclusões de cada um dos dois argumentos não são do mesmo tipo lógico”. Não obstante, autores como Frederick Schauer (2008, p. 1935), por exemplo, sustentam ser a autoridade – e não o argumento de autoridade – campo-invariável, uma vez que sua força advém não de seu conteúdo – o que determinaria a vinculação a determinado campo –, mas sim de sua fonte.
[6] Kötz (1988, p. 661) já atentava para a necessidade de se estudar as práticas de citação nos diversos campos do direito.
[7] Perelman e Olberchts-Tyteca (2014, p. 31) traçam importante distinção entre persuasão e convencimento: “Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional”.
[8] Uma boa reconstrução analítica dessas dificuldades e possibilidades pode ser encontrada em SHECAIRA; STRUCHINER, 2018.
[9] Ver, por todos: ROESLER, 2016.
[10] Veja-se também SHECAIRA; STRUCHINER, 2018 para a discussão sobre auditório universal e os auditórios particulares aos quais os julgadores se dirigem quando decidem os casos a eles submetidos.
[11] No que toca à prática judiciária finlandesa, interessante é a intuição de Aarnio: “Por lo general, en la interpretación finlandesa del derecho, se encuentran referencias a la dogmática jurídica sólo en las obras académicas. No forma parte de la tradición de los tribunales hacer referencia a científicos del derecho y ni siquiera a la llamada opinión dominante. Esto no significa que en las deliberaciones que se realizan dentro del tribunal, a puertas cerradas, por así decirlo, no puedan jugar un papel importante las opiniones expresadas en la dogmática jurídica” (AARNIO, 1991, p. 131-2). Ver também BRAUN, 2006.
[12] A título de exemplo, ver SHAPIRO, 2000. No mesmo sentido, JOHNSON, 1985.
[13] A estrutura formal dos espelhos que resultam das buscas no mecanismo de pesquisa do Supremo pode ser sintetizada da seguinte maneira: (i) Identificação do processo, com o tipo de ação, o número do processo, o ministro-relator, a data de julgamento e o órgão julgador (Tribunal Pleno ou Turmas); (ii) tópico “Publicação”, no qual consta o número da ementa e os volumes do Diário da Justiça, Diário da Justiça Eletrônico ou da Revista Trimestral de Jurisprudência nos quais foi publicado o acórdão; (iii) tópico “Partes”, com a identificação das partes e de seus advogados; (iv) tópico “Ementa”, do qual consta a ementa propriamente dita, com a síntese do julgado; (v) tópico “Indexação”, com as palavras-chave por meio das quais o acórdão pode ser facilmente encontrado pela ferramenta da busca do Supremo; (vi) tópico “Legislação”, em que se elencam os diplomas legislativos citados no acórdão; (vii) tópico “Observação”, no qual se inserem informações concernentes ao resultado da votação (conhecimento e provimento), à forma da votação (unanimidade ou maioria), aos acórdãos citados, ao número de páginas do acórdão; e (viii) tópico “Doutrina”, com as referências bibliográficas utilizadas nos votos.
[14] A confiabilidade do item “Doutrina” dos espelhos datados de 1960 em diante foi testada por amostragem, realizando-se a conferência entre ementa e acórdão em 50 acórdãos retirados aleatoriamente de cada ano analisado. É claro que a representatividade da amostra diminui à medida que aumenta o número de decisões observado em cada ano. Porém, dois fenômenos foram observados nesse sentido: (i) o número de resultados das pesquisas por acórdãos em inteiro teor não apresenta grande variação, podendo ser citados os exemplos de 1960 (5.287 acórdãos), 1965 (5.040 acórdãos), 1970 (3.014 acórdãos), 1975 (3.973 acórdãos), 1980 (2.923 acórdãos), 1985 (1.964 acórdãos), 1990 (832 acórdãos), 1995 (2.204 acórdãos), 2000 (2.270 acórdãos), 2005 (4.508 acórdãos) e 2010 (4.834 acórdãos); (ii) a tendência à estabilização da prática de inserção da doutrina utilizada na ementa, guardando correspondência com aqueles citados no acórdão.
[15] Esclarecimento importante deve ser feito quanto à terminologia aqui empregada. O argumento de autoridade foi denominado “irracional” para designar todo argumento de autoridade que não integre o domínio do logos, mas sim o pathos ou ethos, com vistas a atribuir ao discurso o peso do prestígio do autor utilizado, e não propriamente agregar o conteúdo daquela citação ao conteúdo do discurso. Tal esclarecimento é importante, pois o argumento de autoridade jamais será “irracional” no sentido de “ausência de razão”, já que os efeitos almejados em seu uso fazem parte de estratégia argumentativa do orador como, aliás, se discutiu detalhadamente nas seções anteriores deste artigo.
[16] Ver também: HERDY, 2019, p. 38-42; SHECAIRA, 2017, p. 305-321.
[17] O argumento do grande número e o argumento do “douto” são modalidades de argumento de autoridade citadas por Perelman (2014).
NOTAS
[18] Versão editada e revisada de artigo originalmente publicado na Revista Direito, Estado e Sociedade n. 55, p. 42 a 68, jul/dez 2019.