Direito à saúde e medicina baseada em evidências

Debate aponta que Judiciário necessita priorizar o atendimento coletivo afinal trata-se de um direito social fundamental. -- Por Cildo Globo Júnior e Amanda Degrande de Paula -- (Bonijuris #671 Ago/Set 2021)

Cildo Globo Júnior PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DE FRANCA E DA UEMG

Amanda Degrande de Paula ADVOGADA

A AMPLIAÇÃO DO DIÁLOGO ENTRE AS DUAS ÁREAS É GARANTIA PARA MANTER A SUSTENTABILIDADE DO SUS, DESDE QUE O JUDICIÁRIO PRIVILEGIE O ATENDIMENTO COLETIVO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a saúde foi consolidada como um direito social e fundamental a ser garantido pelo Estado mediante a implementação de políticas públicas de saúde, constituindo um dever estatal a prestação de assistência à saúde, sob a responsabilidade da União, estados e municípios.

No contexto democrático contemporâneo, a concretização do direito à saúde ensejou a ascensão do Poder Judiciário a garantidor dos direitos negados pelos poderes Executivo e Legislativo, diante da incapacidade do Estado de efetivá-lo.

O protagonismo do Poder Judiciário expressa as reivindicações da população na busca pela garantia e promoção dos direitos sociais, sendo representado pelo fenômeno da judicialização da saúde, com a ampliação da atuação dos magistrados, que passaram a interpretar a Constituição por meio de uma postura mais proativa e materializadora dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, é necessário aprovar parâmetros para as decisões judiciais, sendo imprescindível reconhecer a medicina como fundamental na garantia da sustentabilidade do sistema de saúde no que tange à racionalização das decisões judiciais. É preciso traçar uma linha de atuação que concilie os interesses individuais com a percepção coletiva do direito à saúde, através da utilização adequada do Poder Judiciário em benefício de toda a população, uma vez que a sustentabilidade do sistema de saúde é ameaçada pelo contingente de processos judiciais.

A racionalidade da judicialização da saúde pode ser garantida pelo embasamento das decisões judiciais e médicas em conhecimentos científicos orientados pela medicina baseada em evidências (MBE), de modo a garantir eficácia, efetividade, eficiência e segurança na prevenção, diagnóstico e tratamento de saúde.

1. O DIREITO À SAÚDE

Os principais documentos internacionais definem a saúde como um estado completo de bem-estar social, que implica não apenas a ausência de doença, mas também estados de bem-estar físico, mental e social, conforme previsto na Constituição da Organização Mundial da Saúde (1946). Posteriormente, a saúde foi reconhecida como um direito humano fundamental e a mais importante meta social mundial, necessitando da participação efetiva dos Estados para a promoção de políticas de saúde que visem ao bem-estar físico, mental e social da população, conforme previsto na Declaração de Alma-Ata (1978).

Paralelamente a esse marco histórico, no Brasil a saúde foi reconhecida como direito social em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, fundamental para a definição da política na área da saúde pública. Ao conceito de saúde foram incorporadas novas dimensões, uma vez que para haver saúde é preciso ter acesso a outros fatores, como alimentação, moradia, saneamento básico, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, entre outros. Nesse contexto, Asensi (2010) afirma que,

com a Constituição de 1988 e as intensas reivindicações de uma pluralidade de grupos, a saúde tomou seu lugar como um direito fundamental, cujo imperativo é a prestação positiva do Estado no sentido de concretizá-la e ampliá-la a todos os cidadãos. Em seu artigo 196, observa-se que a saúde é um “direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988), o que denota a pretensão universalizante deste direito. Aqui, a saúde é caracterizada como um direito fundamental e dever do Estado, o que denota uma dupla-dimensão (direito-dever) em sua natureza.

A introdução dos serviços de saúde no texto constitucional foi resultado dos movimentos sociais durante o processo de redemocratização do país. A participação popular no Movimento de Reforma Sanitária deu origem a uma proposta de política de saúde que delineou a construção do sistema universal e descentralizado de saúde pública. O

tratamento constitucional do direito à saúde estabeleceu um novo modelo de saúde pública com a criação do Sistema Único de Saúde – SUS.

O SUS é um conjunto de ações e serviços sob a gestão do poder público, que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único. Tem como objetivo a promoção, a prevenção e a recuperação da saúde, integrando o atendimento à população no território nacional. Entretanto, o Sistema Único de Saúde não é uma estrutura isolada, já que se insere no contexto das políticas públicas de seguridade social, que também abrangem a previdência social e a assistência social.

Aparentemente, no texto constitucional, o direito à saúde foi reduzido à responsabilidade do Estado na formulação de políticas sociais e econômicas, presumindo-se que não seria uma norma de aplicabilidade imediata, uma vez que dependeria da formulação e execução das políticas próprias. Entretanto, por se tratar de um valor fundamental, inerente à vida, o direito à saúde tem aplicabilidade imediata, uma vez que os preceitos normativos que tratam de atributos fundamentais têm efetividade e eficácia.

Para Dallari (2008, p. 11), a afirmação constitucional da saúde como esteio social talvez possa explicar como esse direito, contrariando a tradição dos direitos sociais de apresentarem caráter de norma de eficácia contida, vem sendo uma norma de caráter tão eficaz. Nesse mesmo sentido, Asensi (2010) afirma que o atributo da saúde como direito fundamental recebeu a qualificação de norma de eficácia plena, uma vez que possui força normativa suficiente para a sua incidência imediata e independente de norma posterior para a sua aplicação.

As ações e serviços de saúde, portanto, são desenvolvidos de acordo com as diretrizes do art. 198 da Constituição Federal, como a regionalização, descentralização e participação da comunidade, obedecendo ainda a alguns princípios informadores, tais como a universalidade, a integralidade e a igualdade. O SUS é um sistema unificado, que opera de forma descentralizada entre a União, estados, Distrito Federal e municípios, com uma direção única em cada esfera de governo, integrado em uma rede regionalizada e hierarquizada.

2. A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS

A história demonstra que muitos tratamentos e medicamentos foram instituídos e utilizados sem comprovação de sua eficácia e segurança, baseados apenas em opiniões pessoais ou recomendações de pessoas respeitáveis. A mudança do modelo de decisão clínica fundamentada por opiniões para o modelo de decisão baseado em evidências foi um longo processo. Inicialmente, esse movimento estava restrito aos médicos, mas expandiu-se para outras áreas, alcançando o SUS, através da adoção dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (PCDT) e, por último, a judicialização do direito à saúde.

Outro aspecto da judicialização da saúde é a discussão sobre a possibilidade da substituição de medicamentos e outras tecnologias solicitadas no processo judicial. As decisões dos magistrados deveriam ser guiadas pela melhor técnica, mas nem sempre isso ocorre. A fim de orientar a decisão judicial sobre o fornecimento de determinada tecnologia em saúde, a medicina baseada em evidências (MBE) pode oferecer contribuições que garantam a efetividade do direito à saúde e a sustentabilidade do sistema público de saúde.

A MBE tem como objetivo nortear as decisões sobre cuidados em saúde, por meio da busca pelas melhores evidências científicas da literatura médica. Para Atallah e Castro (1998b, p. 5), a medicina baseada em evidências é “o elo entre a boa ciência e a boa prática” clínica, uma vez que integra as melhores evidências das pesquisas científicas com a habilidade clínica e a preferência do paciente.

Segundo El Dib (2014, p. 9), a medicina baseada em evidência é

um movimento de cientistas, médicos e profissionais da saúde na tentativa de utilizar e desenvolver métodos rigorosos que respondam a questões clínicas sobre eficácia, efetividade, eficiência e segurança de determinado tratamento e prevenção, bem como sobre a sensibilidade e especificidade de testes diagnósticos e aspectos prognósticos de certa doença na área da saúde.

O conceito de MBE pode ser definido como o “uso criterioso, explícito e meticuloso das melhores evidências atuais na tomada de decisões relativas à assistência a cada paciente” (SACKETT et al., 1996 apud PEREIRA; GALVÃO; SILVA, 2016, p. 2). Por meio desse conceito compreendem-se os três componentes da medicina baseada em evidências, que são: i. o uso criterioso, explícito e meticuloso que se refere ao aprendizado, conhecimento e reflexão crítica na utilização dos produtos e procedimentos; ii. as melhores evidências atuais que estão relacionadas à atualização das evidências científicas, permitindo a melhor escolha para cada situação; iii. a tomada de decisão relativa à assistência a cada paciente que visa a

beneficiar o paciente ao utilizar a melhor evidência para o tratamento (SACKETT et al., 1996 apud PEREIRA; GALVÃO; SILVA, 2016, p. 2).

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) define que a medicina baseada em evidências

consiste em tentar melhorar a qualidade da informação na qual se baseiam as decisões em cuidados de saúde. Ela ajuda o médico, profissionais de saúde e tomadores de decisão a evitar sobrecarga de informação e, ao mesmo tempo, a encontrar e aplicar a informação mais útil (BRASIL, 2016a, p. 12).

Desse modo, através da postura progressista da MBE, o direito à saúde pode ser desenvolvido em sua integralidade, uma vez que é possível determinar previamente a eficácia, efetividade, eficiência e segurança de um tratamento. Assim, garante-se a tomada da melhor decisão médica, que integra diversas ferramentas científicas e afasta o seu absolutismo.

Com o objetivo de auxiliar as decisões médicas, a literatura científica tem realizado revisões sistemáticas, divulgando o conhecimento científico, a fim de reduzir as incertezas sobre determinado tratamento ou medicamento. Conforme afirma Cochrane (1972 apud ATALLAH, 2002), “tudo que for efetivo deve ser gratuito” para a população. Nesse sentido, Atallah (2002) afirma que para ser gratuito “é preciso saber o que é mais efetivo. E se for efetivo, se é eficiente, se eficiente, se é seguro”. Para Atallah (2010, p. 103):

Oferecer tratamento cuja efetividade e segurança não estão adequadamente estudados contraria a Constituição, pois isso pode promover agravos à saúde e frequentemente, devido ao desperdício com tratamentos caros e ineficazes, reduz o acesso universal àquilo que é efetivo e seguro.

A busca pelos melhores conhecimentos científicos foi incorporada à legislação brasileira pela Lei 12.401/11, que fez algumas alterações na Lei Orgânica da Saúde, desde que o Brasil adotou a saúde baseada em evidências, conforme o disposto no art. 19-O da Lei 8.080/90. Desse modo, as ações e serviços de saúde disponibilizados no SUS devem seguir os conhecimentos da MBE, uma vez que os medicamentos ou produtos são avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e também em relação ao custo-efetividade.

Os estudos realizados pela MBE têm como objetivo revelar a eficácia, efetividade, eficiência e segurança das tecnologias em saúde. Faz-se necessário esclarecer esses

conceitos, uma vez que são termos empregados no sentido técnico-médico, oposto ao significado jurídico.

A eficácia corresponde ao funcionamento do tratamento em condições ideais, ou seja, é a medida do resultado de uma intervenção realizada em condições controladas, ótimas ou ideais para maximizar o efeito do agente (NORDENSTROM, 2008, p. 82 apud GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 217; BRASIL, 2016a, p. 30).

Já a efetividade corresponde ao funcionamento do tratamento em condições reais, ou seja, é a medida do resultado da aplicação da intervenção em condições normais, usuais, não controladas (NORDENSTROM, 2008, p. 82 apud GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 217; BRASIL, 2016a, p. 31).

A eficiência está relacionada ao custo-efetividade, ou seja, procura aquilatar o custo de certo tratamento ou medicamento e o resultado que ele apresenta em comparação com outros tratamentos. Desse modo, a eficiência corresponde ao tratamento não oneroso e acessível aos pacientes, sem desconforto. Consequentemente, haverá maior eficiência na medida em que os resultados positivos obtidos forem ampliados, e menor for o custo da tecnologia em saúde (GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 217).

Por fim, a segurança corresponde às características confiáveis de determinada tecnologia em saúde, de modo que os efeitos colaterais sejam improváveis ou controlados, sendo necessário avaliar os efeitos indesejados antes da comercialização de determinada tecnologia em saúde, pois deve ser mais benéfico do que maléfico, devendo os malefícios ser controlados (GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 217).

Os estudos da MBE são divididos de acordo com os níveis de evidências e são utilizados para a tomada da decisão médica. Nesse sentido, Gebran Neto e Schulze (2015, p. 218-224) sintetizam os níveis de evidências:

Nível 1 – revisão sistemática e metanálise: é o mais alto nível de evidência (prova) de efetividade, realizada mediante a análise de artigos científicos sobre determinado tema, sintetizando cientificamente as evidências apresentadas pelos mesmos. Não trabalha com os doentes, apenas com os trabalhos científicos de qualidade […].

Nível 2 – o Ensaio Clínico Randomizado Mega Trial (com elevado número de pacientes) estão no segundo nível hierárquico das evidências. Ensaios clínicos randomizados consistem em estudos comparativos entre dois grupos de pacientes, distribuídos aleatoriamente, submetidos a diferentes tratamentos para a mesma moléstia. Um dos grupos, geralmente, recebe o novo tratamento, ao passo que o outro grupo recebe um tratamento convencional ou placebo. Nem os pacientes, tampouco os médicos que

realizam a pesquisa sabem quais pacientes receberam o novo medicamento, quais receberam placebo ou o medicamento convencional. Por isso o teste é conhecido como duplo-cego […].

Nível 3 – o ensaio clínico randomizado com baixo número de pacientes está no terceiro nível de evidência, com pelo menos um ensaio clínico randomizado. Em nada destoa do nível anterior de evidência, mas o número reduzido de pacientes deve ser considerado para fins do grau de evidência do resultado apresentado […].

Nível 4 – estudos observacionais de Coorte é um estudo observacional de pacientes que possuem características semelhantes, os quais são divididos em grupos segundo sua maior ou menor exposição a determinados fenômenos, com acompanhamento do prolongado período. O nome coorte remonta às legiões romanas, sendo por vezes usados como sinônimo de estudo longitudinal ou de incidência […].

Nível 5 – o estudo de caso controle é um tipo de estudo observacional onde os pacientes que possuem um determinado desfecho são comparados com pacientes sem este desfecho, com o propósito de determinar fatores que possam ter causado a diferença entre os grupos […].

Nível 6 – o estudo de série de casos ou consecutivos são relatos de diversos casos envolvendo vários pacientes, com o intuito de informar um aspecto novo ou não amplamente conhecido de uma doença ou terapia. São analisados vários tratamentos realizados e os resultados obtidos […].

Nível 7 – a opinião de especialistas, que é o mais baixo grau de evidência, porque se funda exclusivamente na avaliação de um especialista. O baixo grau de evidência decorre da humanidade do especialista, seja porque este pode errar nas suas avaliações, seja porque ele pode sofrer influências externas ou até mesmo ter interesse no encaminhamento de determinada opinião.

Os diferentes níveis de evidência são divididos em fontes primárias e secundárias. As fontes primárias são os estudos “que originalmente geraram o dado, ou seja, avaliaram pacientes, realizaram experimentos in vivo ou in vitro, entre outros” (PEREIRA; GALVÃO; SILVA, 2016, p. 22). As fontes secundárias “são compostas por estudos que sintetizam os resultados de outras investigações” (PEREIRA; GALVÃO; SILVA, 2016, p. 20). Apesar da nomenclatura secundária, são elas evidências mais importantes, uma vez que são o resumo das evidências selecionadas por qualidade e relevância. A revisão sistemática e a metanálise são fontes secundárias. As fontes secundárias devem apresentar as seguintes características para serem confiáveis: a ausência de conflito de interesse; explicar claramente a questão elaborada através do PICO; ter uma metodologia baseada em evidências e ser constantemente atualizada e revisada.

A pesquisa para encontrar a melhor evidência clínica é elaborada através de uma pergunta cujos componentes formam a sigla PICO, sendo representado pelas seguintes etapas: P é o problema, paciente ou população; I é a intervenção; C é o controle ou

comparação e O é o desfecho (outcome). O problema representa a moléstia, o procedimento, o problema de saúde, a condição particular do paciente ou da população. A intervenção é a medida proposta pelo médico, geralmente é a alternativa nova, que pode ser terapêutica, preventiva, diagnóstica, prognóstica, ou seja, é a mudança buscada e testada através das pesquisas clínicas. O controle é a comparação com o método convencional, padrão ou com o placebo. Por fim, o desfecho (outcome) é o resultado esperado, o resultado do interesse em saúde, ou seja, a solução que se busca nas evidências, que pode ser a cura, qualidade de vida, aumento da sobrevida, efeitos colaterais, eficácia, efetividade, eficiência ou segurança da intervenção (GEBRAN NETO, SCHULZE, 2015, p. 219-220; EL DIB, 2014, p. 18; BRASIL, 2016a, p. 30-31).

As classificações dos níveis de evidências orientam as condutas dos profissionais da saúde na tomada da decisão, sendo que os níveis mais baixos representam a ausência de provas que permita conferir certeza sobre determinado estudo clínico. Através da utilização da medicina baseada em evidências é possível fazer pesquisas de boa qualidade, sem conflito de interesses e vieses, principalmente através das revisões sistemáticas.

3. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

O direito à saúde foi positivado na Constituição Federal de 1988, afirmando a saúde como um direito fundamental e um direito de todos e dever do Estado. A concretização desse direito fundamental ensejou a ascensão do Poder Judiciário a garantidor dos direitos negados pelos poderes Executivo e Legislativo, diante da incapacidade do Estado de efetivar o direito à saúde. Segundo Gebran Neto e Schulze (2015, p. 29), o protagonismo do Poder Judiciário resulta da necessidade de concretização do direito à saúde, que é protelada pela crise do Estado-legislador e do Estado-administrador. É o que se chama de fenômeno da judicialização da saúde, uma vez que os outros dois órgãos atuam de modo deficiente.

Para Barroso (2012, p. 24-25), o fenômeno da judicialização é a decisão pelo Poder Judiciário de questões de repercussão política ou social, que deveriam ser decididas pelo Congresso Nacional e pelo Poder Executivo. O autor afirma que é uma circunstância decorrente do modelo constitucional adotado no Brasil, ou seja, não é um exercício intencional de vontade política. Neste sentido, Simabuku et al. (2015, p. 3027) afirmam:

O fenômeno da judicialização na área da saúde não é restrito ao Brasil, mas se verifica também em países da América Latina e diversos outros países nos quais o direito à saúde é o fundamento legal de seus sistemas públicos de saúde. Via de regra as decisões judiciais nesse tema consideram, sobretudo, o direito individual à saúde em detrimento do direito coletivo ou do bem coletivo, desconsiderando desse modo critérios de equidade, de priorização, de oportunidade, de adequação e até mesmo de racionalidade, colocando acima de tudo a efetivação desses direitos individuais.

O reconhecimento do direito à saúde como um direito fundamental e a sua incorporação à legislação, às políticas públicas e à jurisprudência expressam a necessidade de se alcançar o estado de bem-estar social, reconhecendo direitos e responsabilidade dos indivíduos e do Estado na efetividade do direito à saúde. Uma das dificuldades enfrentadas é o estabelecimento de critérios individuais para a disponibilização de tecnologia em saúde. Diante desse cenário de valoração individual, a população recorre ao Poder Judiciário a fim de que a escolha de saúde seja fornecida ao paciente.

A ascensão do Poder Judiciário está atrelada à transição da postura inefetiva para a tentativa de efetivação dos direitos fundamentais. O Judiciário passou a interpretar a Constituição com uma postura mais proativa. Desse modo, assumiu a responsabilidade de discutir os direitos e de proteger a população das ilegalidades praticadas pelo Estado quanto ao direito à saúde, através da nova interpretação dada ao art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, que se tornou o fundamento para a judicialização das questões sociais (GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 46-47).

O Poder Judiciário tem buscado discutir a judicialização da saúde, por exemplo, com a recomendação emitida na Audiência Pública 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em abril e maio de 2009. Essa audiência resultou na publicação da Recomendação 31, de 30 de março de 2010, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que propõe diretrizes aos magistrados em relação às demandas que envolvem o direito a saúde, a fim de assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais.

Segundo Gebran Neto e Schulze (, 2015, p. 80), a Recomendação 31 foi elaborada com a observância de alguns fatores, tais como:

(1) elevado número de processos judiciais sobre o tema da saúde; (2) alto impacto orçamentário sobre o tema saúde; (3) relevância da matéria diante da finalidade de assegurar vida digna aos cidadãos; (4) carência de informações clínicas prestadas aos juízes do Brasil sobre os problemas de saúde; (5) necessidade de previa análise e registro na Anvisa para a comercialização de medicamentos no Brasil, nos termos do art. 12 da Lei

6.360/76 c/c a Lei 9.782/99; (6) reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da prolatação de decisões judiciais; (7) importância de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS.

A Recomendação 31 foi destinada aos tribunais de justiça dos estados e aos tribunais regionais federais para que adotassem algumas iniciativas, como a celebração de convênios para disponibilizar apoio técnico de médicos e farmacêuticos aos magistrados na deliberação das questões clínicas envolvendo o tema saúde; evitar a autorização de fornecimento de medicamentos não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ou em fase experimental; oitiva dos gestores antes da apreciação de medidas de urgência; a incorporação do direito sanitário nos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados e a realização de seminários sobre saúde (BRASIL, 2010).

A fim de subsidiar as decisões judiciais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou duas jornadas de direito a saúde, em 2014 e em 2015, com o objetivo de debater, votar e aprovar enunciados interpretativos a fim de uniformizar o entendimento e auxiliar os magistrados e gestores da saúde nas decisões sobre a assistência à saúde por meio da participação de especialistas das áreas da medicina e do direito. As jornadas fazem parte das ações do Fórum Nacional da Saúde e foram organizadas com base em três eixos temáticos: saúde pública, saúde suplementar e biodireito.

A superação da postura inefetiva que considerava os direitos sociais normas programáticas de aplicabilidade limitada para a interpretação materializadora de direitos fundamentais apresenta dificuldades quanto à fixação de parâmetros que integrem o direito subjetivo à saúde e os deveres do Estado. O direito individual subjetivo não pode ser denegado, porém o direito individual não pode ser priorizado em detrimento do comunitário. Segundo Werner (2008, p. 36), a fórmula direito público subjetivo com direitos à vida e à dignidade da pessoa humana produz uma percepção individual do direito à saúde, ocasionando decisões judiciais que concedem qualquer pedido de tecnologia em saúde. A autora ainda afirma que, se o direito à saúde continuar sendo interpretado pelo conceito de justiça comutativa, continuará privilegiando um determinado grupo, nesse caso representado pelos que têm acesso ao Poder Judiciário.

A determinação judicial desconsidera as políticas públicas de saúde existentes, violando os princípios da equidade, impessoalidade e a isonomia, caracterizando tratamento diferenciado, uma vez que nem todos têm acesso ao Poder Judiciário. Além disso, a intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas de saúde resulta em respostas automáticas às solicitações individuais, sem análise da necessidade do medicamento, representando um mecanismo para garantir o acesso a tecnologias em saúde e comprometendo a efetividade do direito à saúde. Segundo Figueiredo e Sarlet (2008, p. 156):

A universalidade dos serviços de saúde não traz, como corolário inexorável, a gratuidade das prestações materiais para toda e qualquer pessoa, assim como a integralidade do atendimento não significa que qualquer pretensão tenha de ser satisfeita em termos ideais.

O Poder Judiciário, em regra, atrela a saúde e o direito individual ao fornecimento ilimitado das prestações de saúde, interferindo na efetivação do direito fundamental à saúde, em virtude das omissões dos demais poderes, de modo que as suas decisões repercutem nas políticas públicas de saúde, desorganizando o orçamento público, uma vez que implicam a realocação de recursos para o cumprimento das decisões judiciais.

O principal debate quanto ao direito à saúde é se ele possui limitação, uma vez que vem sendo tratado pelo Poder Judiciário como um direito absoluto. Para Gebran Neto e Schulze (2015, p. 37):

Um pensamento inicial conduz a ideia de que se trata de um direito absoluto. Isso se dá em razão da noção geral segundo o qual sem saúde não há dignidade humana. As decisões judiciais, em geral, deixam de enfrentar tal questão, fundamentando, genérica e equivocadamente, que o direito a saúde está previsto na Constituição e que por isso cabe ao Estado prestar toda e qualquer política a fim de concretizá-lo, condenando o ente público a prestar tratamentos e fornecer produtos, medicamentos e novas tecnologias.

Por exigir uma atuação positiva do Estado na formulação e na efetivação das políticas públicas de saúde, o direito à saúde apresenta um custo, sendo que as necessidades humanas, geralmente ilimitadas, acabam restringidas pela disponibilidade de recursos financeiros. Nesse sentido, o direito à saúde não pode ser considerado um direito absoluto, pois é essencialmente limitado pelos recursos financeiros, sendo que ao Poder Judiciário não cabe a escolha de onde serão alocados os recursos públicos e a criação de políticas públicas.

As decisões judiciais, inclusive do STF, condenam os entes públicos ao fornecimento de tecnologias em saúde, inclusive de tecnologias não registradas na ANVISA, uma vez que as

decisões judiciais são tomadas em um plano individual. Nessa perspectiva, Amaral (2010 apud GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, P. 41) observa:

Diante dos quadros como esse, a tendência natural é fugir do problema, negá-lo. Esse processo é bastante fácil nos meios judiciais. Basta observar apenas o caso concreto posto nos autos. Tomada individualmente, não há situação para a qual não haja recursos. Não há tratamento que suplante o orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orçamentos da União, de cada um dos Estados, do Distrito Federal ou da grande maioria dos municípios. Assim, enfocando apenas no caso individual, vislumbrando apenas o custo de cinco mil reais por mês para um coquetel de remédios, ou de cento e setenta mil reais para um tratamento no exterior, não se vê a escassez de recurso, mormente se adotado o discurso de que o Estado tem recursos nem sempre bem empregados.

Para Castro (2014 apud GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 29-30), o direito à saúde no Brasil está atrelado ao mito do governo grátis, no qual o Estado deve prestar tudo sem nenhum custo. Esse pensamento incentiva até o próprio Poder Judiciário nas suas decisões que desequilibram o sistema público de saúde.

Para Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2017, p. 193-4), o direito à saúde, ainda que não regulamentado por normas infraconstitucionais, representa um direito subjetivo do indivíduo às prestações de saúde, uma vez que reconhece a aplicabilidade imediata e a eficácia da norma constitucional:

Enquanto e na medida em que (pois ainda há quem defenda tal ponto de vista) doutrina e jurisprudência negam a tal direito, no caso, às normas que o definem e asseguram, sua eficácia jurídica e aplicabilidade, ou apenas admitem que se trata de norma de eficácia limitada, a consequência será́ a decisão de não reconhecer (pela via judicial) um direito subjetivo a qualquer prestação em matéria de saúde que não tenha já sido objeto de previsão legal e, para alguns, inclusive de previsão orçamentária. Se, contudo, como atualmente corresponde ao pensamento majoritários, se reconhece a eficácia jurídica e aplicabilidade imediata (direta) de tais normas, um possível efeito (jurídico e concreto) do direito à saúde será́ até mesmo o reconhecimento de um direito subjetivo originário a prestações ainda que não previstas em legislação infraconstitucional, já́ por força da normativa constitucional.

O Poder Judiciário tornou-se o protetor das omissões do Estado na implementação das políticas públicas. Apesar de sua legitimidade para reconhecer lesões ou ameaça ao direito, deve haver limites na sua atuação, devendo agir apenas no controle e na insuficiência das políticas públicas existentes, não criando políticas de saúde através da decisão judicial.

Segundo Gebran Neto e Schulze (2015, p. 49-50), a judicialização da saúde tem que considerar duas hipóteses. A primeira, quando se postula um direito já reconhecido mas negado administrativamente, ou seja, quando a tecnologia de saúde já foi incorporada ao SUS, sendo que, nesse caso, o juiz deve julgar procedente a ação, pois se trata de um problema de gestão. E a segunda hipótese refere-se aos direitos não reconhecidos administrativamente, como tecnologias em saúde não incorporadas ao SUS, sem registro na ANVISA, ou incorporada, mas que não se destina à determinada prescrição médica. Nessa situação, não há previsão legal para a concessão da tecnologia, sendo que a condenação dos entes públicos pode ocasionar prejuízo financeiro e dificuldade na execução orçamentária. Para os autores, no caso da segunda hipótese é necessário que se estabeleça um padrão para a decisão do magistrado para o equilíbrio do papel do Poder Judiciário no que tange à judicialização da saúde.

Mendonça (2016) assevera que a interferência judicial cria algumas dificuldades, como:

(i) desorganização administrativa, dada a necessidade de desviar recursos – orçamentários, materiais e humanos – para o cumprimento das ordens;

(ii) ineficiência alocativa, uma vez que remédios são adquiridos em pequena escala para atender às decisões, por vezes desconsiderando a existência de alternativas similares disponíveis nas listas oficiais; e

(iii) grande estímulo à seletividade, já que as prestações beneficiam apenas o universo restrito de potenciais litigantes. Em se tratando de doenças complexas e de diagnóstico difícil, aliás, não é incomum que o público típico das decisões judiciais seja consideravelmente diferente daquele que lota as emergências dos hospitais públicos em busca de atendimento básico.

O Poder Judiciário tem muito a avançar quanto à judicialização da saúde, a fim de evitar abusos praticados pelos indivíduos, pela indústria farmacêutica, pelos médicos e pelos entes públicos, tendo legitimação democrática no que diz respeito às decisões judiciais. Entretanto, a esse órgão não cabem decisões indiscriminadas sobre a gestão da saúde, uma vez que uma das suas funções é o controle da administração pública, devendo agir apenas em caso de vício, omissão, ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato administrativo (GEBRAN NETO; SCHULZE, 2015, p. 100 e 103).

Gadelha (2014, p. 66) afirma que as ações judiciais

implicam conteúdos técnicos e médicos diversos e abrangentes, cria-se um conflito entre várias discricionariedades (aqui entendida como a prerrogativa de cada agente envolvido decidir sobre o que se lhe toca) – a médica, a da gestão da saúde e a do Juízo –, no qual a balança pende para o

poder que, hoje, se afigura, até por faculdade do Judiciário, como o maior de todos: o poder médico. E é a inquestionabilidade da prescrição médica como premissa adotada pelo Poder Judiciário que confere essa maior potência ao poder médico, fortalecendo-o além do próprio Poder Judiciário e em detrimento da discricionariedade, igualmente técnica e legítima, da gestão e administração dos sistemas de saúde.

Para Gadelha (2010), há uma confusão, principalmente da parte do Poder Judiciário, quanto aos princípios da universalidade e integralidade que gerem o SUS, o que pode ocasionar o fim do justo acesso ao sistema de saúde. A mesma autora observa:

Lamentavelmente, ainda há quem persista com a ideia de modelo centralizado, desconsidere a hierarquização e, contrastando, confunda universalidade com liberdade de acesso e escolhas (por exemplo, escolha por onde, como e com o que ser assistido) e integralidade com ilimitabilidade assistencial (por exemplo, disponibilidade de tudo o que exista, não importando se válido, a que custo e onde seja ofertado). Essa liberalidade no modo de ver e assim querer que seja o funcionamento do SUS expressa o conflito entre o desejo individual e o direito coletivo, numa equação que terminará por zerar a universalidade e o justo acesso (GADELHA, 2010).

Essa autora também apresenta alguns impactos negativos das decisões judiciais que desconsideram as normas de funcionamento do SUS, ao defender a tese de que o Poder Judiciário

participa desse contexto, impondo, quando desconsidera a inconsistência técnica ou as alternativas existentes, uma alocação não planejada de recursos previamente orçados. A transferência de responsabilidade para o SUS por atendimento realizado fora de suas normas operacionais ou de sua rede de estabelecimentos credenciados e habilitados (conforme parâmetros de necessidade e critérios de qualidade e sustentabilidade devidamente estabelecidos) gera (quando não também desperdício de recursos públicos) distorções e problemas para esse Sistema (que não pode ser tomado como um mero fornecedor de procedimentos ou medicamentos), como: desregulação do acesso assistencial com justiça e equidade; perda da integralidade assistencial; ausência do controle e da avaliação da assistência prestada; quebra das prioridades definidas para a saúde pública; financiamento público direto da assistência privada sem o devido contrato para a utilização de recursos públicos (GADELHA, 2010).

Para tentar diminuir a judicialização da saúde é necessário estimular um diálogo entre a medicina e o direito, pois o Judiciário tem controlado a efetivação do direito à saúde sem nenhum limite. Consequentemente, o acesso às informações sobre saúde é essencial para a tomada de decisão pelo magistrado, de modo a fazer que a judicialização seja

racionalizada através da busca pelas melhores evidências científicas sobre a tecnologia em saúde solicitada no processo, a fim de embasar a decisão judicial.

No tocante à racionalização das decisões judiciais cabe destacar o voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso no julgamento conjunto dos recursos extraordinários 566.471 e 657.718. No julgamento do primeiro, o ministro propôs a realização do diálogo entre o Poder Judiciário e os entes com capacidade técnica para a avaliação das tecnologias em saúde, como a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) e os núcleos de apoio técnico, para aferir os requisitos de dispensação de medicamentos e, no caso de deferimento judicial, determinar aos órgãos competentes (CONITEC e MINISTÉRIO DA SAÚDE) que avaliem a possibilidade de incorporação ao Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2016b).

O ministro Barroso continua propondo a observância de cinco requisitos cumulativos para reduzir e racionalizar a judicialização da saúde a serem analisados pelo Poder Judiciário para o deferimento da prestação em saúde. São eles:

(i) a incapacidade financeira do requerente para arcar com o custo correspondente, (ii) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes, (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS, (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências, e (v) a propositura da demanda necessariamente em face da União (BRASIL, 2016b).

Quanto ao fornecimento de medicamentos não previstos na política pública de saúde existente e nos protocolos clínicos, o ministro afirma que deve ser exigida a comprovação da eficácia do medicamento com base nos conhecimentos da medicina baseada em evidências. A decisão judicial de deferimento do pedido não pode se basear apenas na prescrição médica, não podendo admitir que o Poder Judiciário ignore os requisitos da medicina baseada em evidências nas demandas individuais (BRASIL, 2016b).

No Recurso Extraordinário 657.718, o ministro Barroso afirmou que nas ações que envolvam o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa o Estado só deve ser obrigado a fornecê-lo quando preenchido três requisitos, conforme observa:

O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, sem eficácia e segurança comprovadas, em nenhuma hipótese. Já em relação a medicamentos não registrados na Anvisa, mas com comprovação de eficácia e segurança, o Estado somente pode ser obrigado a fornecê-los na hipótese de irrazoável mora da agência em apreciar o pedido de registro

(prazo superior a 365 dias), quando preenchidos três requisitos: 1) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil; 2) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e 3) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União (BRASIL, 2016c).

Como dito antes, a fim de orientar a decisão judicial sobre o fornecimento do medicamento, a medicina baseada em evidências pode oferecer grandes contribuições, uma vez que afasta o casuísmo e a opinião médica, que representa o nível mais baixo de evidência (ARAUJO, JUNQUEIRA, LOPEZ, 2016, p. 78). Consequentemente, o magistrado não deve estar atrelado ao receituário médico, mas sim solicitar a realização de perícia judicial que avalie se a prescrição se identifica com os conhecimentos da MBE ou solicitar a colaboração de algum órgão especializado para verificar se a tecnologia em saúde demandada é necessária ou adequada para a melhora ou cura da doença, se existem alternativas disponíveis no SUS e o custo-eficiência do tratamento judicializado.

A racionalidade das decisões judiciais será alcançada pela verificação de evidências científicas referentes à tecnologia em saúde solicitada pelo indivíduo no processo judicial, através da elaboração do PICO (problema, intervenção, controle e desfecho) e da busca em base de dados, sendo as principais a Cochrane (THE COCHRANE LIBRARY), Lilacs (LITERATURA LATINO-AMERICANA E DO CARIBE EM CIÊNCIAS DA SAÚDE) e Pubmed.

Para racionalizar a judicialização da saúde é preciso, portanto, estabelecer diálogos entre o direito e a medicina. Esse diálogo será concretizado quando o magistrado amparar sua decisão nos conhecimentos da medicina baseada em evidências, seguindo os critérios da eficácia, efetividade, eficiência e segurança das tecnologias em saúde, embasando suas decisões naquelas da CONITEC ou do Núcleo de Apoio Técnico (NAT), procedendo a uma avaliação comparativa entre os benefícios e custos da tecnologia solicitada em relação às tecnologias já incorporadas ao SUS (GEBRAN NETO; ACHULZE, 2015, p. 69) e, por fim, observando os enunciados das jornadas de direito da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A saúde, por ser um direito social e fundamental, deve ser preservada. Entretanto, o desafio consiste em ultrapassar a visão judicial de fornecimento de direito absoluto e ilimitado, que obriga o Estado a realizar a mera entrega compulsória de tudo o que é solicitado, sem uma análise técnica da tecnologia em saúde pretendida. É necessária a interação entre o direito e a medicina, uma vez que o fornecimento de tecnologias em saúde não deve estar restrito à opinião médica, mas é essencial a ampliação da parceria interdisciplinar a fim de que a efetividade constitucional do direito à saúde não resida na judicialização da saúde.

A fim de racionalizar a judicialização da saúde é preciso construir pontes entre o direito e a medicina, uma vez que é impossível manter a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde se o Poder Judiciário continuar privilegiando o atendimento individualizado em detrimento do coletivo. Esse diálogo será efetivado quando o magistrado amparar sua decisão nos conhecimentos da medicina baseada em evidências, seguindo os critérios da eficácia, efetividade, eficiência e segurança das tecnologias em saúde, garantindo materialmente o direito à saúde dos indivíduos, com o fornecimento da tecnologia em saúde necessária, segura e eficaz para o tratamento de saúde.

Portanto, no que tange à judicialização da saúde o Poder Judiciário tem muito o que avançar quanto à aplicação de conhecimentos científicos para a tomada de decisão.

AMANDA DEGRANDE DE PAULA: Direito à saúde e medicina baseada em evidências/doutrina, 1

CILDO GLOBO JÚNIOR: Direito à saúde e medicina baseada em evidências/doutrina, 1

Saúde, 1

FICHA TÉCNICA // Revista Bonijuris Título original: O direito fundamental à saúde e a medicina baseada em evidências. Title: The fundamental right to health and evidence-based medicine. Autores: Cildo Giolo Júnior. Pós-Doutor em Direitos Humanos pelo “Ius Gentium Conimbrigae” (IGC/CDH) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES). Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA (Argentina). Mestre em Direito Público pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Especialista em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito de Franca (1994). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (1991). Professor Titular na Faculdade de Direito de Franca e na Universidade do Estado de Minas Gerais. Docente e advogado. Avaliador do MEC/INEP para os cursos de Direito. E-mail: drcildo@gmail.com. Amanda Degrande de Paula. Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade do Francisco Maeda (FAFRAM), Ituverava/SP. Resumo: A racionalidade da judicialização da saúde pode ser garantida pelo embasamento das decisões judiciais em conhecimentos científicos orientados pela medicina. A saúde foi reconhecida como um direito humano fundamental e a mais importante meta social, necessitando da participação efetiva dos Estados para a promoção de políticas em prol do bem-estar físico, mental e social da população. Estudos baseados em evidências são

utilizados para a tomada da decisão médica; logo, é preciso ampliar o diálogo entre o direito e a medicina, uma vez que é impossível manter a sustentabilidade do SUS se o Judiciário privilegiar o atendimento individualizado em detrimento do coletivo. Palavras-chave: DIREITO À SAÚDE; JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE; MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS. Abstract: The rationality of the judicialization of health can be guaranteed by basing judicial decisions on scientific knowledge guided by medicine. Health was recognized as a fundamental human right and the most important social goal, requiring the effective participation of States to promote policies for the physical, mental and social well-being of the population. Evidence-based studies are used for medical decision-making, therefore, it is necessary to expand the dialogue between law and medicine, since it is impossible to maintain the sustainability of the Unified Health System if the Judiciary privileges individualized care to the detriment of collective. Keywords: RIGHT TO HEALTH; JUDICIALIZATION OF HEALTH; EVIDENCE-BASED MEDICINE. Data de recebimento: 02.04.2021. Data de aprovação: 02.06.2021. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 33, n. 4 – #671 – ago./set. 2021, págs … . Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, PR, Brasil, ISSN 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

REFERÊNCIAS

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