Brumadinho, o licenciamento ambiental e a ‘capa de legalidade’


Douglas de Castro. ADVOGADO ESPECIALISTA EM DIREITO AMBIENTAL

Na abertura do livro “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx declara: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Calamidade igual pelas perdas humanas e ambientais, o rompimento das barragens da Vale Mineradora em municípios de Minas Gerais atinge proporções gigantescas. Se Mariana foi uma tragédia, Brumadinho constitui-se uma farsa. Farsa, esclareça-se, porque baseada em comportamento ardiloso e cínico dos agentes envolvidos.

De quem é a responsabilidade pela tragédia? Respondo com algumas ponderações. Assim que noticiou-se o fato, a primeira reação foi atribuir toda culpa à empresa que explora a atividade econômica. Sem dúvida, a responsabilidade deve ser atribuída à Vale, uma vez que ao tomar para si um empreendimento assumiu os riscos da atividade. Por outro lado, cabe lembrar que a responsabilidade ambiental é objetiva, ou seja, independente de atribuição de culpa, a mineradora deve indenizar as vítimas e reparar os danos causados. Além disso, há a questão penal que envolve a empresa. Sua responsabilidade é clara, não havendo razão para longos procedimentos que podem se arrastar por anos – no que repetiria o desastre de Mariana, ocorrido em 2015.

E quanto às autoridades da cidade de Brumadinho? É fato: ao gerar empregos, recolher impostos e proporcionar a expansão da atividade, a Vale seguiu incólume, apesar de constatar-se agora a precariedade de outras 41 barragens em Minas Gerais. O que dizer do governo do estado e do governo federal, ambos agora sob nova direção?

Precisamos de uma Operação Lava-Jato ou deveríamos dizer Lava-Lama para resolver de uma vez por todas os problemas das barragens no Brasil?

O licenciamento ambiental e as consultas públicas não passam de uma farsa encenada para dar à mineradora e aos gestores uma ‘capa de legalidade’. Sob a argumentação de ‘estar dentro da lei e, portanto, isenta de responsabilidade’ constrói-se a farsa ‘público-privada’. Quanto aos requisitos técnicos de manutenção, quanto aos órgãos de fiscalização de barragens (31 no Brasil), quanto ao marco regulatório da mineração, quanto à política nacional de segurança de barragens, esfumaçaram-se.

O Estado tem grande parcela de responsabilidade. Precisamos de uma Operação Lava-Jato ou deveríamos dizer Lava-Lama para resolver de uma vez por todas os problemas das barragens no Brasil? Assim como as empreiteiras foram responsabilizadas, chegou a vez das mineradoras? 

E nós? Qual é a nossa responsabilidade? Ontem ouvi pessoa próxima comentar que comprou ações da Vale e que depois as vendeu lucrando 6%. Buscamos fundos de ações ou previdências privadas que nos proporcionem grandes resultados? Colocamos pressão nos fundos, que por sua vez colocam pressão nas empresas e executivos, para manter “o bom trabalho e o crescimento”, pois, afinal de contas, não queremos perder. 

Quem votou em candidatos a presidente, governadores, deputados e senadores esperando uma resposta aos desmandos que dominaram o cenário político nas últimas décadas, vai cobrar os seus representantes ou entrar no ciclo vicioso da culpa da gestão anterior? A oposição (ontem situação) ficará torcendo para o “quanto pior, melhor” às custas destas tragédias?

Em minha opinião, o mecanismo do licenciamento ambiental deve ser aperfeiçoado e não abolido como querem pessoas dentro do novo governo. O licenciamento que aí está é ineficiente e burocrático, como comprovam esses acidentes impiedosos e trágicos. Contudo, a busca por investimentos estrangeiros e o incremento da atividade econômica não pode sombrear a necessidade e responsabilidade de todos de tornar o processo industrial de exploração seguro e confiável o suficiente para que proteja o meio ambiente e a população. Tanto se fala do desenvolvimento sustentável, mas na prática é um conceito com o qual ainda não sabemos lidar. Este talvez seja o nosso grande desafio daqui em diante para evitar que ocorram outras tragédias como a de Mariana e farsas, porque hipócritas, como a de Brumadinho. 

Tenho consciência que minha análise apresenta mais questionamentos do que respostas, mas, como já dizia o sábio: as perguntas são mais importantes que as respostas. Elas precisam ser colocadas de forma que a resposta seja somente uma: resolver de uma vez por todas a aflição dos atingidos pelos acidentes (aqui aproveito para reforçar o caso de Mariana) e tornar as atividades mais seguras para o meio ambiente e população ao mesmo tempo em que o crescimento econômico é perseguido. Não podemos abrir mão destas respostas. 

Douglas Castro é professor de direito internacional e relações internacionais na Universidade Paulista. Professor visitante na Foundation for Law and International Affairs (Washington D.C.). Advogado da área ambiental e regulatória do Cerqueira Leite Advogados.

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