Alimentos para ex-cônjuge: ora, mas não é ‘ex’?

Não se pode fazer do pós-divórcio um negócio lucrativo nem negar a boa-fé objetiva no distrato da sociedade conjugal.

Delmiro Porto ADVOGADO, PROFESSOR DE DIREITO CIVIL NA UNIDOMBOSCO

Não se pode fazer do pós-divórcio um negócio lucrativo nem negar a boa-fé objetiva no distrato da sociedade conjugal

  1. IDEIAS INICIAIS E O PROBLEMA

Há um adágio da criativa cultura popular, segundo o qual “cônjuge pode ser por um tempo, mas ex-cônjuge é para sempre”, que bem traduz os incômodos que os ex-sócios conjugais podem provocar entre si. Entre esses incômodos que parecem não ter fim está a questão dos alimentos.

Num lampejo, pode-se afirmar que “alimentos” para o direito de família é termo que abrange a ideia de amplo sustento de uma pessoa, incluindo a alimentação propriamente, mas também moradia, vestuário e saúde. Nesse pacote a lei garante a educação, em sendo menor, e (a doutrina bem lembra) todo alimentando tem direito ao sepultamento.

Em nossa sistemática, desde as Ordenações Filipinas, sempre fora possível à mulher pedir alimentos ao fim da sociedade conjugal, em face, claro, de seu ex-esposo. Até tempos recentes, basicamente até 2002 (com o advento do Código Civil), somente a mulher tinha o direito a alimentos em razão do fim da sociedade conjugal.

Professor de direito de família, de simpática urbe tupiniquim, ilustra essa questão com caso (não se sabe se é real ou ficção de professor) de umas senhoras elegantes que desfrutariam, em pleno século 21, de pensões conquistadas há 30, 40 anos, ou mais, quando se divorciaram de oficiais das Forças Armadas. Segundo a ilustração do professor, as tais senhoras teriam a petulância de ostentar nas boutiques locais o jargão mágico: “sou pensionista de general, meu bem”.

É que, por volta dos 30 anos de idade se divorciaram de tenentes e capitães, quando fora fixada pensão em percentual sobre o soldo e remuneração do militar, o que criou uma indexação estranha porque a cada vez que o ex-esposo foi promovido, as pensionadas também o foram (vejam, que festa! Ele foi a major, ela também. Foi a tenente-coronel, ela também…), e quando seus ex-maridos alcançaram os postos mais elevados (a duras penas, diga-se), também suas ex-senhorinhas passaram a dias mais regalados, podendo até ostentar, com o jargão mágico, “sou pensionista de general, meu bem”.

Assim, com essa figura de linguagem, faz-se a ilustração básica da problematização: esses alimentos a ex-consortes sustentam, em alguma medida, a dignidade do alimentado ou produzem o efeito inverso? Onde estaria o primeiro e impreterível pressuposto, o vínculo (parental ou conjugal)?

Nem se propõe a responder questões outras, aqui eleitas como secundárias, tal qual a falta da equação necessidade versus possibilidade etc.

O Código Civil observa a igualação constitucional de homem e mulher, portanto, dos esposos, preconizando a reciprocidade desse direito, ou seja, tanto ela quanto ele podem, desde então, pedir alimentos no divórcio, bastando, para tanto, demonstrar a necessidade.

Ocorre que, seja no período anterior, seja com o código vigente (é para ficar pasmo!), o direito assenta uma verdade dogmática (ou não) que não condiz, de forma alguma, com a realidade fática, com a verdade social, uma vez que esses alimentos vinham sendo fixados com caráter de permanência e somente em favor da mulher, gerando, além de absurdo jurídico, uma imoralidade.

Na questão da moral basta dizer que esses alimentos mal determinados juridicamente eram causa de parasitismo (não sempre, mas muitas vezes) e de apologia à vadiagem, não bastassem outras incoerências graves: a uma, porque atentavam contra a dignidade humana (quando deveriam ser suporte de dignidade), à medida que uma pessoa jovem e saudável podia ser sustentada por outra (fator indignante e injuriante), e, a duas, porque impedia a produção de riquezas por força do trabalho, lembrando que o sistema nacional é capitalista, como quase todo o resto do mundo.

O presente estudo, forjado no zelo, mas sem descuidar da brevidade máxima, pretende refletir a necessária mudança de paradigma dos alimentos fixados a ex-cônjuges, fazendo interface com a juridicidade constitucionalizada dessa mudança, com uma observação conveniente: tudo que se refere a ex-cônjuge também vale para ex-companheiro, que é a pessoa ex-convivente informal de alguém. Ao invés de estar casado (união formal), esteve em união estável. Logo, o presente discurso vale para ambos os casos, ex-cônjuge e ex-companheiro, motivo pelo qual doravante prefere-se dizer “ex-consorte”.

2. INFLUÊNCIA DO PATRIARCADO NA DISTORÇÃO DOS ALIMENTOS

O patriarcado é a estrutura de família trazida pelo colonizador português, inspirada no berço da civilização romana, que consiste em organizar o grupo familiar primário inteiramente com base na figura do homem, conhecido como pai de família. Nesse modelo, do pater familias, a família tem ao centro a figura do homem-patriarca, que, investido de um poder totalitarista (o pater potestas dos romanos), rege os demais membros (Coulanges, 2002).

Nessa simples pincelada conceitual é possível perceber que a família patriarcal é marcada pela desigualdade, hierarquizada pelo critério da superioridade masculina, tendo o homem o poder de mando sobre todos. Daí a expressão “chefe de família”, bem representada no ditado popular da época: quem come do meu feijão, reza do meu terço.

Por falar nesse provérbio que se refere ao sustento, por conta dessa superioridade é ele também o provedor da casa. Afinal, essa autoridade resulta de seu poder econômico (só ele tem produtividade e carreira profissional), logo, também é ele o provedor. Essa é a ideia central do patriarcado: o homem detém o poder econômico, logo detém o poder político, vale dizer, é o “familiar-chefe-mor”, com voz e vez.

Avançando um passo na especificidade deste trabalho, vejamos que, sob a égide do Código Civil de 1916, o art. 231 previa, entre os deveres conjugais de ambos os esposos, a mútua assistência (inc. iii), exatamente como hoje o faz o art. 1.566 do código atual (também no inc. iii), mas essa mútua assistência podia até ocorrer no plano imaterial, como o psicológico, emocional, porque no plano econômico-financeiro era mesmo o homem quem detinha o encargo de provedor. Pior: durante a sociedade e após o fim dela. Pode-se afirmar, talvez, que isso era um alto preço pelo seu poder político.

Com o fim da sociedade conjugal pelo simples desquite, ou com o fim do casamento, que se fez possível a partir da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977 (que criou o divórcio), entendia-se, por efeito do patriarcado, que cumpria ao homem manter o sustento da ex-esposa, assim como somente ele deveria sustentar os filhos após o rompimento da casa.

Não vem ao caso falar da questão dos filhos, porque o objetivo é entender a completa ausência de razão para que o homem seja mantenedor da ex-consorte, sabendo-se que pelos mesmos fundamentos ter-se-á a resposta de por que cabe a ambos os pais, em igualdade, manter o sustento dos filhos após o divórcio.

Certamente essa desafinada interpretação (homem mantenedor da ex-mulher), que se seguiu mesmo com a partitura do atual Código Civil (que pugna pela igualação de homem e mulher), tem um tempero cultural. Ou seja, ao mesmo tempo em que a lei nova vem atender à mudança da realidade social, há, também, por força da cultura estabelecida, resistências sociais, institucionalizadas (inclusive), que impedem o avanço e a incidência da norma mais propícia, nesse caso a norma do art. 1.694 do Código, que põe os cônjuges em reciprocidade (igualdade) na obrigação de alimentos.

3. MÚTUA ASSISTÊNCIA APÓS O DIVÓRCIO: UM FUNDAMENTO PÍFIO

Em verdade (data venia) não existe fundamento jurídico para o pensionamento de ex-cônjuge: é bom adiantar essa verdade, assim, nua e crua. Não existe fundamento jurídico, ao menos enquanto fornecimento em regra e em se tratando de alimentos definitivos[1].

Ocorre que no patriarcado, para que a ex-mulher (desquitada) não se voltasse contra seus parentes na busca de alimentos (já que em regra era hipossuficiente em relação ao esposo), o Estado investiu nessa prática conveniente de obrigar o homem a manter a ex-esposa, ao argumento de que essa obrigação alimentar estava fundada no dever de mútua assistência entre cônjuges. Ora, “mútua assistência” mesmo com o fim da conjugalidade?

Poder-se-ia questionar a premissa acima, sob a assertiva de que o desquite não rompia o vínculo conjugal (o casamento), mas somente a sociedade nele contida. Ocorre que, (i) com o fim da sociedade conjugal dever-se-ia cessar a mútua assistência, como cessam o regime de bens, a coabitação, a fidelidade; (ii) ocorre, ainda, que o mesmo tratamento foi mantido com as ex-esposas no divórcio (a partir de 1977), quando o divórcio extingue não só a sociedade, mas também o vínculo conjugal.

Para balizar essa construção, que venha a lume o pensamento corrente na doutrina e na jurisprudência segundo o qual a pensão prestada a ex-cônjuge, na separação judicial ou no divórcio, tem a natureza de alimentos resultantes do prolongamento do dever de assistência, nascido este com o vínculo do casamento.

Venosa (2009, p. 377), por sua cátedra, após explicar que os alimentos entre cônjuges decorrem da mútua assistência (embora esta seja mais ampla, envolvendo o imaterial), registra que “a regra, em geral é, portanto, que, em caso de separação judicial ou de fato, o marido prestará pensão alimentícia à mulher”. Na mesma lição, o mestre deixa claro que isso também se dá em caso de divórcio, recomendando (como ocorre por toda a literatura jurídica) que o dever de mútua assistência entre ex-cônjuges é uma extensão de efeitos e que é a mulher quem comumente reclama esse direito (ou suposto direito).

Entretanto, frise-se, desde sempre a mútua assistência é dever conjugal e, como tal, teria que ser cumprido enquanto durar a sociedade, e só. Finda a sociedade (mera separação de fato ou de direito), faz cessar o fundamento jurídico de assistir, muito mais em se tratando de divórcio, que rompe a sociedade e o vínculo conjugal propriamente. Da mesma forma, claro, diz-se do fim da união estável.

Dessarte, proclamar que o dever de mútua assistência entre ex-cônjuges é uma extensão de efeitos é afirmar um pseudodogma (não é um dogma verdadeiro), eleito por conveniência do Estado (também da sociedade) para que o homem fosse mantenedor de sua ex-consorte, dona de casa e alheia à realidade dinâmica do mercado de trabalho. Do contrário, ela se voltaria, certamente, contra seus parentes, especialmente em face de seu pai.

3.1. Uma amostra do discurso judicial

Aflige constatar que a visão distorcida faz com que essa leitura da mútua assistência a ex-cônjuge, típica do patriarcado (visão que, culturalmente, ocorre quase sempre em favor da mulher), vingasse para além da Constituição de 1988 (que trouxe a família das igualdades, anunciando o fim do patriarcado) e avançasse mesmo com o Código Civil de 2002 (que veio regulamentar e efetivar a família nova – das igualdades). Senão, veja-se ementade acórdão recente:

Agravo de instrumento – Ação de divórcio c/c fixação de alimentos provisórios – Pensionamento em benefício da ex-esposa – Dever de assistência mútua – Necessidade – Não comprovação – Pagamento indevido.

1. Os alimentos devidos pelo ex-cônjuge se sustentam no dever de “mútua assistência”, que se prolonga para além do rompimento do vínculo conjugal, quando há fundada necessidade de quem os pleiteia, que, por motivos alheios a sua vontade, não possui condições de se manter por suas próprias expensas.

[…]

(AI 1.0428.13.001039-3/001/MG, Des.(a) Áurea Brasil, Quinta Câmara Cível, julgado em 17/10/2013, DJe 23/10/2013).

Note-se a comprovação teórico-prática da premissa e da matéria sob análise: “Os alimentos devidos pelo ex-cônjuge se sustentam no dever de ‘mútua assistência’, que se prolonga para além do rompimento do vínculo conjugal”.

Pede-se atenção para o pseudodogma que temos sustentado: ex-cônjuge, que equivale a se referir a “ex-vínculo” (desapareceu o vínculo), mas esse vínculo que se extinguiu seria a causa da continuação da mútua assistência. Mas, como admitir isso?

Esse julgado, em que pese tenha concluído pela negativa ao pedido de alimentos, em seus meandros traz discurso equivocado (com vênia em nome da ciência), que não mais se sustenta, mormente mediante o fato da efetivação da família cidadã (família das igualdades), cuja espinha dorsal é a própria dignidade da pessoa (art. 1º, inc. iii, da Constituição Federal), tendo na igualdade uma das principais balizas (Lôbo, 2014).

3.2. Há uma questão pondo em xeque o dogma dos alimentos a ex-consorte?

Em linguagem singela, pode-se afirmar que dogma jurídico é uma verdade posta, legitimamente posta pelo poder legiferante, que coincidiria com o próprio comando normativo, com a previsão normativa, que traz uma verdade reflexa da sociedade, um dever-ser.

Nesse tom simples, constata-se que, se um fato escapa à norma, ele não pertence à experiência jurídica (Reale, 2002), logo não pode ser socialmente exigido. Ou seja, não há como cobrar juridicamente às pessoas o que não foi valorado pela sociedade, ao ponto de merecer a normatização e, por consequente, a vinculação social.

Em que terreno jurídico estaria fincado o dogma que estabelece obrigação de alimentos entre ex-consortes?

“Mútua assistência” não pode ser fundamento e ratio, porque já se desfez a sociedade conjugal e, por vezes, até o próprio vínculo (divórcio). “Extensão da mútua assistência”? “Extensão” fundada em quê?

Há um exagero nesta caneta aqui, ou estaria havendo um distrato à ciência do direito, com afirmação de um dogma que não é possível admitir existente?

4. ALIMENTOS PARA EX-CÔNJUGE HOJE: NA DOUTRINA E NOS TRIBUNAIS

A igualdade constitucional anunciada em 1988 (cf/88, art. 5º) seria o start para uma nova leitura dos alimentos entre ex-cônjuges, com vistas a vencer a premissa do patriarcado, que faz do homem casado único provedor, cujo dever de assistência acabava por irradiar até mesmo após o divórcio, sem limite de tempo.

4.1. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 933.355/SP: ex-cônjuge em condições de se sustentar

Esse julgado do Superior Tribunal de Justiça (stj) teria concretizado a nova leitura dos alimentos entre ex-cônjuges, que deixariam de ser regra, para ser exceção.

Consigne-se a lição de Tartuce (2015, p. 481), em comento à decisão do stj:

Tal decisão inaugurou, naquele Tribunal, a conclusão segundo a qual os alimentos entre os cônjuges têm caráter excepcional, pois aquele que tem condições laborais deve buscar o seu sustento pelo esforço próprio(grifo original do livro).

Trata-se de famoso caso (“psicóloga dos Jardins”) em que ex-esposa buscou reajuste de pensão para majorar e viu sua pensão, simplesmente, exonerada pelo stj, pois ela estava enfronhada no mercado de trabalho (psicóloga), produzindo dividendos suficientes para sua mantença.

Não se pode fazer do pós-divórcio um negócio lucrativo, uma fonte de riqueza, que, aliás, levaria ao enriquecimento sem causa. Do contrário, estaria sendo negada a boa-fé objetiva no distrato da sociedade conjugal e a própria essência do direito de família, que é extrapatrimonial, sem contar a refinada natureza do instituto dos alimentos, que está entranhado na personalidade (direito da personalidade).

Por vezes, a prática forense nas varas de família mostra que nem se trata da busca do lucro pelo lucro apenas, mas, além da vantagem econômica, pelo desejo de vingança, pelo animus caedere (vontade de destruir), que deveria ser animus ferrandi (linguagem popular bem sugestiva), coisa muito típica no tabuleiro de jogo do divórcio, onde se multiplicam, implicam e se complicam os sentimentos e ressentimentos.

Naquela empreita do stj, o voto da ministra Nancy Andrighi asseverou que,

caracterizada essa atividade como potencialmente apta a mantê-la com o mesmo status social que anteriormente gozava, ou ainda alavancá-la a patamares superiores, deve ser julgado o pedido de exoneração deduzido pelo alimentante em sede de reconvenção.

Essa tomada de posição na jurisprudência superior representou o marco de uma conquista do direito de família, mas, a bem da verdade, foi um começo tímido, porque a decisão é denegatória sob o argumento de que a requerente de majoração dos alimentos detinha meios para manter o status dos tempos de casada e até de se alavancar a patamares maiores.

Nesse julgado o homem provedor só escapou dos alimentos (além de não aumentar, o stj atendeu ao pedido reconvencional e os extinguiu) porque sua ex-esposa podia manter, por si mesma, o status social dos tempos conjugais. Ou seja, uma pena que a referida decisão assinala a novidade, mas, timidamente, deixando afirmado, numa interpretação contrario sensu, que o fenômeno do homem provedor, inclusive após o divórcio, ainda era uma realidade em pleno ano de 2008.

Não estamos negando a elegância do passo liderado nesse voto/parecer profícuo, mas não se pode negar que há uma premissa ínsita nessa decisão de que, se a alimentanda, por regra geral, não estivesse apta a manter o nível social que detinha, teria direito, sim, a ser escorada pelo ex-marido.

Aí já entra outra questão aflitiva e desafiadora que é saber se os alimentos civis (com manutenção de status) alcançam o ex-cônjuge. Desse aspecto fala-se mais à frente.

4.2. Alimentos para ex-consorte na evolução jurisprudencial: excepcionalidade e transitoriedade

No ano de 2010, o stj (REsp 1.025.769/mg, rel. min. Nancy Andrighi) sinaliza com clareza meridiana os novos rumos dos alimentos fixados pelo fim da vida conjugal, pelo que se põe a registrar, en passant, pontos bem ilustrativos da ementa.

Nesse acórdão encontra-se oportuna referência à boa-fé dos ex-cônjuges, mencionada no item 4.1: “A boa-fé objetiva deve guiar as relações familiares, como um manancial criador de deveres jurídicos de cunho preponderantemente ético e coerente.”

Em capítulo introdutório do presente debate, tivemos o cuidado de trazer a boa-fé objetiva e o seu alcance na questão dos alimentos. Ora, com certeza, a boa-fé objetiva é uma diretriz que não pode faltar na tratativa dos alimentos, que, embora fixados pelo poder público, resultam de obrigação privada, ou, em última análise, de uma convenção entre particulares. É regida por norma cogente, mas no âmbito do direito privado.

Mesmo quando fixada pelo poder público, decorrente, nesse caso, de relação jurídica verticalizada, a eficácia jurídica desse vínculo relacional se passa entre particulares, no âmbito das relações horizontalizadas, que têm por marca maior a igualdade, o equilíbrio jurídico (Pontes de Miranda, 1970).

Como anuncia o subtítulo acima, o caminho novo é o da excepcionalidade dos alimentos a ex-cônjuge, e esse aspecto da exceção, por sua vez, leva à transitoriedade e à dispensa do fator equalização (necessidade versus possibilidade).

Ainda no acórdão de 2010, eis importante baliza:

Mesmo que se mitigue a regra inserta no art. 1.694 do CC⁄02, de que os alimentos devidos, na hipótese, são aqueles compatíveis com a condição social do alimentando, não se pode albergar o descompasso entre o status usufruído na constância do casamento ou da união estável e aquele que será propiciado pela atividade laborativa possível.

Eis uma provocação tímida, mas boa provocação, dita e expressa no voto da relatora, para quem nem sempre será possível garantir alimentos civis ao ex-cônjuge, vale dizer, alimentos para manutenção de “condição social” (art. 1.694 do Código Civil), que é, na linguagem cotidiana, o status, no sentido de padrão de vida. Não fora assim, no estudo de caso trazido, da psicóloga dos Jardins, o homem correria o risco de cumprir alimentos ad aeternum para cobrir a eventual diferença de nível de vida a menor conquistado pela mulher após o divórcio.

Logo se vê que entre alimentos necessários (ou naturais) e alimentos civis (ou côngruos), os primeiros para a subsistência e estes últimos para sustentar status (Cahalli, 1998), os alimentos fixados ao final do casamento estão mais para os primeiros, garantidores apenas da subsistência, pelo que dita a tendência hermenêutica.

Seguindo firme no voto de relatoria, a ministra Nancy Andrighi anuncia os alimentos a termo, ou seja, alimentos fixados com prazo certo (por determinado período), extinguindo-se a obrigação automaticamente com o termo final:

A obrigação de prestar alimentos transitórios – a tempo certo – é cabível, em regra, quando o alimentando é pessoa com idade, condições e formação profissional compatíveis com uma provável inserção no mercado de trabalho, necessitando dos alimentos apenas até que atinja sua autonomia financeira, momento em que se emancipará da tutela do alimentante – outrora provedor do lar –, que será então liberado da obrigação, a qual se extinguirá automaticamente.

Em 2011 (REsp 1205408/rj) o stj continua evoluindo na nova tonalidade dos alimentos de ex-cônjuge, afirmando, desta feita, que está dispensada, inclusive (fantástico!), a verificação do binômio necessidade/possibilidade na equação dos alimentos:

Se os alimentos devidos a ex-cônjuge não forem fixados por termo certo, o pedido de desoneração total, ou parcial, poderá dispensar a existência de variação no binômio necessidade/possibilidade, quando demonstrado o pagamento de pensão por lapso temporal suficiente para que o alimentado revertesse a condição desfavorável que detinha, no momento da fixação desses alimentos.

[…] ao atingir a autonomia financeira, o ex-cônjuge se emancipará da tutela do alimentante – outrora provedor do lar –, que será então liberado da obrigação, a qual se extinguirá automaticamente. 

Para resumir, transcreve-se item da ementado acórdão de agravo regimental em agravo por recurso especial (AgRg no AREsp 725002/sp), que é mais recente (outubro/15) e mostra a posição pacificada pela jurisprudência:

Nos termos da orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional e transitório, excetuando somente esta regra quando um dos cônjuges não detenha mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira.

Por fim, no livro Alimentos Transitórios: Uma Obrigação por Tempo Certo, Buzzi (2009) arremata conclusivo que os alimentos transitórios duram somente até que o ex-consorte adquira sua condição financeira, pois seria inadmissível um sustento vitalício a quem pode prover-se por si mesmo.

Suma da evolução e estado da arte: alimentos para ex-consorte são excepcionais, transitórios, a termo e sem o fator proporcionalidade (da equação necessidade/possibilidade).

4.3. Quais seriam as exceções fáticas para provimento do “ex”?

Naquele julgado de 2011 (analisado retro) do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1205408/rj), configura-se hipótese de alimentos “perenes, nas excepcionais circunstâncias de incapacidade laboral permanente ou, ainda, quando se constatar, a impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho”.

A “incapacidade laboral” é pressuposto autoexplicativo, sendo perfeitamente assimilável que ex-consorte, fora do mercado de trabalho por enfermidade ou deficiência (física ou mental), estaria a depender legitimamente da prestação alimentar.

O outro pressuposto citado no acórdão (“a impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho”) convém ilustrar. Certo de que o caso prático é o melhor conselheiro, mesmo porque a análise caso a caso permitirá julgamento com maior equidade, a prática forense nos mostra os seguintes exemplos: (i) mulher que sempre se dedicou ao lar, por conveniência e oportunidade da família, e se encontra na terceira idade por ocasião do divórcio; (ii) a mulher que se dedicou à casa, diante da impossibilidade de conquistas profissionais, em razão de prestar apoio material e moral ao esposo, que é militar de carreira das Forças Armadas, com mobilizações inopinadas e constantes, para os mais diversos rincões do Brasil, além de estadas fora do país. Por vezes essas mobilizações não exigem mudança de residência, mas implicam a ausência do esposo por semanas e meses. No caso dos militares aviadores e da Marinha, chegam a se ausentar de suas casas pela maior parte do ano, sobrecarregando a cônjuge e impossibilitando qualquer chance de conquistar profissão, cargo público, comércio etc.; (iii) mulher que se dedicou inteiramente à prestação de cuidados ao ente familiar com deficiência, e se encontra, ao fim do casamento, em idade incompatível com as possibilidades do mercado de trabalho, pois dependeria de atualizações na educação profissional e nos conhecimentos tecnológicos; (iv) ou teria idade compatível para se adaptar, mas fica responsável pela guarda ou curatela do filho especial que sempre lhe demandou intensos e extensos cuidados.

Por idade incompatível ao entrosamento no mercado de trabalho, entenda-se (o caso concreto será muito importante) não só a pessoa em terceira idade, mas, por exemplo, mulher que, aos 50 anos de idade, tem diabetes e depressão, fatores que tornam impossível sua adaptação ao mercado. Não é uma pessoa inválida, no sentido previdenciário, mas, na prática, ela não guarda forças e potenciais hábeis a reagir diante das demandas de mercado.

Em qualquer caso, porém, seja pela presença do pressuposto da incapacidade laboral, seja pelo pressuposto da impossibilidade prática de inserção no mercado, o desafio é identificar a norma (o dogma) que se presta a embasar o referido direito à assistência.

5. PROPOSTA POR UMA NOVA DOGMÁTICA

Diferente da opinio doctorum reinante, inclusive na jurisprudência, de que a obrigação alimentar nesses casos decorreria do prolongamento do dever de mútua assistência, o presente trabalho procurou oferecer um fundamento jurídico apropriado para a garantia desse direito subjetivo e intuitu personae.

Percebe-se que restou pacificada essa espécie de convenção, de que o extinto vínculo conjugal seria a causa dessa obrigação alimentar, numa projeção de efeitos que iriam, em caráter excepcional, além da extinção do vínculo. Ou seja, o vínculo se extinguiu (obrigação alimentar exige vínculo enquanto pressuposto essencial), mas, por força de uma exceção, seus efeitos seriam estendidos.

A conclusão que aí se encerra já é um avanço, porque ao menos, como mostrado na construção jurisprudencial e da doutrina, a obrigação alimentar em favor do “ex” passou a ser excepcional. Por isso mesmo a obrigação tornou-se mitigada e a termo (com prazo certo para se extinguir).

Dentro dessa exceção (contida nela) há outra exceção: a de que esses alimentos poderão ser em caráter definitivo em casos típicos de comprovada impossibilidade de o outro vir a atingir a autonomia financeira, ainda que em nível de mínima sobrevivência digna.

O lastro jurídico, porém, é o desafio para passar a limpo ambas as exceções, dos alimentos a termo e dos alimentos definitivos.

Para ser mais claro, ao invés de falar do ponto de vista negatório do direito ao ex-consorte, vamos falar do ponto de vista da afirmação do direito a alimentos. Por esse viés, tem-se: em regra os ex-consortes receberão alimentos transitórios e a termo; excepcionalmente receberão alimentos definitivos.

Em tempos, também recentes, de empreendimento da constitucionalização do direito civil, tem-se a significativa identificação das cláusulas gerais de tutela, estampadas no texto constitucional, dentre elas o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. iii).

Essa escola pós-positivista, que hospeda grandes mestres, a exemplo de Lôbo (2014) e Tartuce (2015), traz esse princípio como baliza maior (em relação aos demais), elegendo-o ao nível de cláusula geral de tutela, que abarcaria as demais (da boa-fé objetiva, da igualdade, da solidariedade, da função social), no sentido de ser a maior e mais abrangente proteção à dimensão humana. Atua, portanto, como primeira e última trincheira, essa cláusula geral de tutela, que irradia essa ampla garantia tácita, projetada pelas luzes garantistas do fenômeno da constitucionalização do direito privado. É uma proteção sistemática, inteligente, civilliter, cujo escopo maior é a proteção essencial das pessoas em risco (entenda-se, da essência das pessoas, da dimensão humana como fim em si mesma, sob a filosofia kantiana). Certamente aí está o amparo de ex-consorte que, não sendo autossuficiente, será amparado por aquele com quem mantivera o vínculo conjugal (ou de união estável), cujo liame acabara (extinguiu-se o elemento vincular).

Por fim, poder-se-ia fundamentar aquela assistência do ex-consorte pelo lastro do direito consuetudinário, cujo uso teria se perpetuado e se consolidado enquanto costume (com normatividade) por força da distorção continuada no julgamento dos nossos pretórios. Afinal, costume também é fonte do direito civil. Essa saída seria, talvez, demasiadamente frágil para lastrear um direito típico da personalidade, de tamanha significação para o jurisdicionado.

A dignidade da pessoa humana, com potência sistêmica diferenciada, acredita-se, seja a baliza a demarcar e garantir, com fundamento suficiente, esse pensionamento ao ex-consorte. Afinal, é princípio fundamental expresso na carta da República, eleito como cláusula geral de tutela na hermenêutica que se instrumentaliza na profícua ferramenta da constitucionalização do direito de família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encerrando página rançosa do patriarcado, há uma nova forma de acomodar os alimentos devidos a ex-esposos, pois se aquele contexto filosófico era marcado por desigualdades, o estado da arte mostra uma nova realidade, mais ajustada à verdade social vigente e mais alinhada com os marcos democráticos.

Desse modo, caso o fim da sociedade conjugal (vale para os companheiros) leve um dos ex-esposos a depender de alimentos, cumprirá ao outro, tendo possibilidade, prestá-los. Sim, mas em caráter excepcional, transitório, a termo e sem equalização.

Com esse quadro arrematado, faltava, contudo, definir o verdadeiro lastro desses alimentos, pois não pareceu convincente, enquanto exercício dogmático, a prática doutrinal e forense de invocar a extensão dos efeitos da mútua assistência conjugal.

Concluímos que o princípio da dignidade da pessoa humana tem esse alcance, atuando como trincheira fatal e vital para todas aquelas situações que poderiam escapar à proteção jurídica, por falta de reconhecimento imediato (expresso) na dogmática jurídica posta, que é o caso desses alimentos que perduram, ainda que findo o amor.

Alimentos para ex-cônjuge? Ora, mas não é ‘ex’?/doutrina, 1

DELMIRO PORTO: Alimentos para ex-cônjuge? Ora, mas não é ‘ex’?/doutrina, 1

// Revista Bonijuris FICHA TÉCNICA Título original: Alimentos para ex-cônjuge: ora, mas não é “ex”? Title: Alimony for ex-spouse: well, but isn’t it “ex”? Autor: Delmiro Porto. Advogado Civilista. Pós-graduado lato sensu em Direito Civil e Processual Civil. Mestre em Desenvolvimento Local, com pesquisa em “Família enquanto base e matriz social”, pela Universidade Católica Dom Bosco. Nesta, leciona na graduação, é coordenador e leciona na especialização lato sensu em Direito Civil, com ênfase em família e sucessões. Resumo: O Código Civil observa a igualação constitucional do homem e da mulher, portanto, ambos têm reciprocidade no direito a pleitear alimentos no divórcio, bastando, para tanto, demonstrar a necessidade, sejam cônjuges ou companheiros. Pelos mesmos fundamentos, também cabe a ambos os pais, em igualdade, manter o sustento dos filhos após o divórcio. Com o fim da sociedade conjugal (vale para os companheiros), se um dos ex-consortes depender de alimentos, cumprirá ao outro prestá-los; mas somente em caráter excepcional, transitório, a termo e sem equalização, tudo com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Abstract: The Civil Code observes the constitutional equalization of men and women, therefore, both have reciprocity in the right to plead for food in divorce, just to demonstrate the need, whether spouses or partners. On the same grounds, it is also up to both parents, on an equal footing, to support their children after divorce. With the end of the conjugal society (it is valid for the companions), if one of the ex-consorts depends on food, it will be up to the other to provide them; but only in an exceptional, transitory, term and without equalization character, all based on the principle of human dignity. Data de recebimento: 26.06.2020. Data de aprovação: 06.08.2020. Fonte: Revista Bonijuris, vol. 32, n. 5 ‒ # 666 – out/nov, págs …, Editor: Luiz Fernando de Queiroz, Ed. Bonijuris, Curitiba, pr, Brasil, issn 1809-3256 (juridico@bonijuris.com.br).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal.

BRASIL. Código Civil.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

BUZZY, Marco Aurélio Gastaldi. Alimentos transitórios: uma obrigação por tempo certo. 1a. ed. (4ª reimpressão). Curitiba: Juruá, 2009.

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COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2014.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. Tomo 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, v. IV.

REALE, Miguel. O direito como experiência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. História do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, v. I.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. 10. ed. São Paulo: Método, 2015, v. 5.

______. Direito civil: direito das sucessões. 10. ed. São Paulo: Método, 2015, v. 6.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 15. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2009, v. 7.


NOTA

[1] Definitivos ou regulares são os alimentos fixados por sentença de mérito, com caráter de definitividade, ou seja, duram enquanto estiverem presentes os pressupostos que levaram à fixação e não houver provocação judicial para reanálise ou extinção da relação obrigacional.

*PUBLICADO NA REVISTA BONIJURIS 666 – OUTUBRO / NOVEMBRO 2020

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