

Em 1967, o jornalista e escritor pernambucano Fernando Pessoa Ferreira (1932-2010) iniciava assim uma crônica sobre os cidadãos nascidos na capital do Paraná,aqueles que deitaram raízes nessas terras e, tal como o pinheiro araucária, não poderiam ser transplantados: “Os curitibanos são uma estranha tribo que se alimenta de pinhões, mas reside em casas iguais às nossas”.
A crônica foi publicada na revista “Livro de Cabeceira do Homem”, volume III, impresso pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, editado por Paulo Francis, que animado com o texto, acrescentou-lhe um subtítulo: “Onde Jânio Quadros Comia Moscas”.
Afirma-se que provocou balbúrdia, fúria, rasgos de cólera. Ferreira,que aqui vivera dez anos (de 1953 a 1963), virou persona non grata. Pouco pelo que observara, mais pelo que do curitibano fizera piada. Que o nativo é sorumbático, macambúzio, ensimesmado,taciturno, não há dúvida. Que as loiras ainda envaidecem-se quando passam e alguém diz, sem sussurrar: “olha o topete dela”. De fato, elas ainda ostentam aquele topete indisfarçável e démodé.Que a primavera é tiritante e que o verão também o é, não será difícil comprovar. Mire o tipo faceiro que agora mesmo tosse ou funga ao seu lado. Não salvou-o o rum creosotado.
Afora isso, Curitiba tem origem no tupi-guarani. Era assim,juntando Curii com Tiba, que os indígenas chamavam o pinheiro araucária (dava aqui, não acolá, porque isso é coisa de maná em que se plantando tudo dá). O que Ferreira fez foi brincar. A propósito do Orgulho Futebol Futebol, o Coritiba, tratou de explicar que trocou o “u” pelo “o” por pudor. A propósito do nome da capital, disse, omitindo sílaba, que seu “significado foi traduzido, em parte, por historiadores: ritiba quer dizer do mundo”.

A Ferreira uniu-se outro “desalmado”: Dalton Trevisan, quem diria,um curitibano de cinco anos, a parodiar “Canção do Exílio” no livro “Pão e Sangue” (1988), em que pese o tom saudoso:
Não permita Deus que eu morra / sem que daqui me vá / (…) morrer ó supremo desfrute / em Curitiba é que não dá / (…) já imaginou o presidente da OAB pipilando o verbo / os trezentos milhões da Academia Paranaense / (…) castigo bastante é viver em Curitiba / morrer em Curitiba que não dá.
Seis anos depois, Dalton escreveria a valsa definitiva da capital ao imprimir em “Dinorá” (1994), um poema nostálgico da Curitiba que foi, não é, nunca mais será:
Que fim ó Cara você deu à minha cidade / a outra sem casas demais sem gente demais / ó Senhor sem chatos demais / essas tristes velhinhas tiritando nas praças / essas pobres santíssimas heroicas vizinhas / todas eram noivas todas tinham dezoito anos todas coxas fosforescentes (“Curitiba Revisitada”).
Duas observações. Ferreira concorda: as curitibanas “são bonitas e têm pernas grossas. Perna grossa é um atributo feminino tipicamente curitibano. Algumas exageram, mas a maioria é digna da mais entusiástica homenagem (sic)”.

Ferreira discorda: aquelas que tiritam ao frio são representantes legítimas das “matronas cívicas”. ´

Mais conservadoras, mais ortodoxas do que uma caixa de “Maizena”, elas frutificam no frio do planalto paranaense, esbanjando bolor e xale mental.

Dalton Trevisan é nostálgico, porque nascido em Curitiba e afeiçoado à memória de uma cidade real ou irreal, mas de qualquer maneira fria e chuvosa. Muito chuvosa.
Quem sabe até uma boa cidade / ai não chovesse tanto assim / chove pedra das janelas do céu chove canivete nos telhados / chovem mil goteiras na alma // (…) não te reconheço Curitiba a mim já não conheço / a mesma não é outro eu sou.
Em seu blog homônimo, Arthur Virmond de Lacerda, destaca outros fragmentos da crônica de Fernando Pessoa Ferreira sob o título “Curitibocas. Algumas testemunhas” (2016) e conclui que pouco mudaram os hábitos desde então.
Prosseguem tal e qual em 2016, em relação à reserva e à taciturnidade. A nota de aspereza advém da comparação entre o curitibano e outras gentes no Brasil: falta ao curitibano a doçura, a amabilidade no trato humano e mesmo no sotaque. O curitibano é áspero não por rudeza, mas por ausência da espontaneidade afável com que outros interagem e falam. Ainda que haja curitibanos polidos e gentis (há-os), rareiam os afáveis,ao mesmo tempo em que a pronúncia curitibana é, de todo, carente do “português com açúcar”a que se referia Gilberto Freyre para caracterizar a entonação brasileira.
Sobre o sotaque do curitibano, Ferreira faz pilhéria:


Jânio é Jânio Quadros, o comedor de moscas. Ferreira jura que, muito antes do político renunciar à presidência da República, ele foi aluno interno do Ginásio Paranaense. Lá comia moscas diante dos amigos para que eles, nauseados, rejeitassem a comida e ele pudesse dela se apropriá-la. Reinfield, o serviçal de Drácula, padecia do mesmo hábito, conquanto fosse mais íntegra.Só comia moscas (e aranhas, e baratas, e libélulas gordurosas…).
Quanto ao que define como homo curitibanus, o autor de “Curitiba, a Fria” diz que viveu dez anos na capital paranaense e ouviu de “estrangeiros” – estudantes de outros estados e mesmo do interior do Paraná – o seguinte relato:



O que é mito? O que é verdade?
1 – Ao contrário do mineiro, o curitibano não é solidário nem no câncer.
2 – Curitiba, assim como Nova York, “é uma cidade de vizinhanças em que as pessoas não têm vizinhos”. (Arthur Virmond de Lacerda citando o escritor Gay Talese).
3 – Curitibano só cumprimenta o vizinho quando este está algemado e à porta do camburão. (Dante Mendonça).
4 – Carlos Alberto Pessoa (morto em 2017) imputa o comportamento arredio do curitibano à sua ascendência européia, ao clima e à altitude da cidade (943 metros). Realmente, o clima frio e nublado, com escassez de luminosidade, privação de calor e de luz solar, produzem efeito deprimente em inúmeras pessoas, desanimam-nas, induzem-nas à esquivança e não à alegria, à espontaneidade, à vida de relação. (Arthur Virmond de Lacerda).
5 – Eduardo Emílio Fenianos (o Urbenauta, o Chato) ao ser indagado sobre o motivo da fama de arredio e frio do curitibano: Porque realmente é. Mas, aos seus próprios olhos, é perfeitamente normal. Onde está escrito que devemos cumprimentar as pessoas no elevador? Quem disse que elas querem responder às usuais perguntas sobre o clima que normalmente iniciam conversas que não levam a nada? Há dias em que não há vontade de conversar e neste ponto o curitibano é sincero e honesto. Chato.
6 – Roberto Gomes aconselha em crônica intitulada “O Curitibano – Método de Abordagem” (1988), também citada por Lacerda: Antes de mais nada é preciso ser apresentado ao curitibano. Se for preciso convidá-lo a entrar, preocupe-se. Drácula segue a mesma etiqueta.
7 – Curitiba,capital do Paraná, não é apenas um Brasil diferente: não é Brasil, ao menos,não é brasileira em relação à simpatia dos brasileiros e ao seu clima, frio,obscuro e lúgubre. (Wilson Martins em “Um Brasil Diferente”, citado por Arthur Virmond de Lacerda).
8 – Não é verdade que todo balconista de loja age como um curitibano. Se bem que o inverso possa ser factual.
9 – Não é verdade que o curitibano responda à saudação de “bom dia” com uma indagação: “Por quê?”
10 – Xingue-os do que você é. Acuse-os pelo que você faz. Exima-se apenas se forem curitibanos. (Vladimir Ilitch Lênin).