II – A estátua de Manuel da Borba Gato.
A estátua colossal de Manuel da Borba Gato, existente em Santo Amaro (SP) enaltece o papel dos bandeirantes como desbravadores, como alargadores do território brasileiro, como fundadores de povoações (depois cidades), como paradigmas de ousadia, persistência, destemor frente ao desconhecido realmente extraordinários e ímpares na história da civilização, como é ímpar o fenômeno das bandeiras, como espírito de chefia, organização, planejamento e sinergia de negros, índios e brancos, notas explicitadas por Cassiano Ricardo em seu indispensável Marcha para Oeste[1].
Com acrimônia, certa historiografia recente verbera os bandeirantes por haverem cometido violências contra os silvícolas; alguns, com linguajar grosseiro, apodam-nos de bandidos (o que não eram). Seria de esperar que, ao seu tempo, houvessem procedido diferentemente ou como procedemos em 2020 ? Os ataques que desfecharam às reduções jesuíticas integravam-se em estratégia geopolítica, obedeciam a razões de Estado e nem foram tão cruentas quanto os jesuítas mentiram e exageraram, em favor próprio. Na atualidade, ninguém aceita que se reproduzissem os ataques tal como habitualmente se narra que ocorreram e, se vivessem hoje, os próprios bandeirantes provavelmente haver-se-iam diferentemente. Mas eles não vivem no nosso tempo; viveram o seu e dentro do seu é que os devemos compreender e julgar.
Genro de Fernão Dias Pais, Manuel da Borba Gato acompanhou-o em expedições; o assassínio injustificável (aliás, perdoado em vida) de D. Rodrigo de Castelo Branco (em 1682) macula-lhe a memória; descobriu jazidas áureas no rio das Velhas e em Sabarabuçu; participou da querela dos emboabas (1707 – 1709). Como guarda-mor do Rio das Velhas (em que foi investido em 1700) e juiz ordinário em Minas Gerais, foi zeloso e probo. Não são méritos que justificassem estátua e ainda menos, colossal. Como vulto histórico, foi mal elegido, e excessiva a representação, porém disto para a destruição da estátua intervém o espírito justiceiro de minorias inflamadas, indignadas com a forma como os silvícolas foram alegadamente espezinhados pelos bandeirantes. Não por todos (advirta-se) nem sempre (atente-se nisso), porém por alguns, que atuaram com violência em circunstâncias especialíssimas, violência, aliás, magnificada pelos jesuítas, propagandistas das hostilidades com que os bandeirantes desfizeram-lhes o anseio por constituir república teocrática em que seriam eles os senhores e os índios os seus dóceis súditos.
É mister ser justo: é imperioso evitar a atitude maniqueísta, sensível apenas ao que se reputa atuação condenável, como se os bandeirantes e as bandeiras e Borba Gato houvessem desempenhado papel essencialmente nefasto na história do Brasil. Violência, há que não a exagerar e situá-la no espírito daquele tempo. Bandeiras, cumpre reconhecer-lhes papel construtivo; bandeirantes, que neles se admirem qualidades.
Que se mantenha a estátua de Borba Gato, em louvor à sua (secundária, é verdade) ação, porém sobremodo como símbolo de predicados ímpares do tipo de brasileiros de que ele foi um. Que por ela recordemo-nos do valor da iniciativa, da perseverança, do esforço por arrostar dificuldades, do desdém pela vida desidiosa e confortável. Que por ela também nos lembremos de que somos falíveis e errantes; que ela nos anime a sermos melhores, pela imitação das virtudes dos bandeirantes e pela esquivança do que lhes julgamos errado. Que se mantenha a estátua também como lição de época, pela percepção de que décadas atrás os paulistas por ela exaltavam dados valores e dadas atuações, pelos quais já nem todos se entusiasmam, porém que merecem a reflexão inteligente de quem vê a própria estátua como documento histórico, como convite a aquilatarmos o quanto de razão assistia aos paulistas seus promotores. Que se mantenha a estátua por respeito para com os paulistas que a erigiram e que, sem por ela coonestarem todas as facetas de Borba Gato e dos bandeirantes, por ela prestigiaram o que lhes pareceu louvável e civicamente recomendável. Que se mantenha a estátua (menor de meus argumentos) porque, afinal, Borba Gato não foi nocivo ao ponto de justificar-se-lhe a remoção.
Não estou a justificar a violência de séculos transactos, nem a minimizá-la; longe disto, mas é injusto condenar os bandeirantes por haverem sido homens do seu tempo, alheios a alguns de nossos valores, motivo por que indignam os indignados do presente. Que estes, compreensivelmente avessos à violência do passado (a qualquer violência de qualquer passado: matanças, escravidão, marginalização social, ignorância, miséria, privilégios) não cometam outra, a de quem seja incapaz de compreender o passado, embora se afoite em arvorar-se em juiz de quem já não se pode defender.
Removerem-se estátuas de antigos senhores ou mercadores de escravos, sob a pecha de “racistas” parece-me bastante primário e injusto; quando menos, problemático: a condição de senhores ou de mercadores, em tempo em que sê-lo era normal e geralmente aceitado, não pode servir como critério de desabonação de alguém daquele passado. Pode servir se o mesmo personagem fosse escravista no presente, ao mesmo tempo em que se o homenageado merece estátua ou busto, é porque méritos teve e é forçoso considerá-los. Ninguém se tornou objeto de estátua ou busto por haver sido escravista, como tal, e sim mercê de outras de suas facetas. Não é justo derribarem-se monumentos por causa de critérios que não serviram para erigi-los.
Assim como assim, a remoção de monumentos não pode resultar da ação direta de grupos de exaltados que se arrogam o papel de justiceiros sociais, de juízes do passado e de figuras homenageadas.
Nenhum grupo, anti-racista, racista, anti-facista, facista (seja lá o que signifiquem esses termos, que o abuso semântico deturpou) é legítimo para decidir, em conciliábulos, que monumentos merecem persistir ou não; a nenhum conjunto de militantes, por mais nobremente movido que aparentemente seja, é legítimo deliberar pela remoção de monumentos, e executá-la, à margem dos meios legais e administrativos para tal. Nenhum grupo de militantes sociais, de justiceiros sociais, de anti-escravistas ou seja lá quem for pode, por força própria, suprimir monumentos públicos. Para fazê-lo, há formas legais, ordeiras, administrativas, serenas sem as quais se pratica desordem pública, crime de destruição de patrimônio público (ou privado) e, ao fim e ao cabo, violência que aplaca as turbas furiosas e os arruaceiros e cuja suposta nobreza de ideais, todavia, não justifica em caso nenhum.
[1] Autores como Cassiano Ricardo, Afonso de Taunay, Ermelino de Leão, Francisco Negrão, são tachados despectivamente, de conservadores ou oficiais (pasme); os que assim os nomeiam acusam-nos de intentarem dissimular ou ocultar violências de cuja denúncia os revisionistas (como Júlio José Chiavenato e os marxistas em geral) são porta-vozes. Os revisionistas acusam e denunciam em historiografia depreciativa, fomentadora de ódios e de repulsa pelo passado. Mais destroem do que constroem, ao inverso dos mal chamados conservadores.